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Foto do escritorFernando Pernas

Quem dirige o Maestro – conclusão

Um Maestro e um Mestre dialogam acerca do tempo e da descoberta de ligações entre os seus dois mundos. "Quem dirige é o maestro" é a continuação de um artigo anteriormente publicado aqui no Blogue do IPR por Fernando Pernas, um aluno do curso Alfaiates do Tempo e o responsável pelos momentos musicais da Roda.



Do atelier do Mestre relojoeiro, era visível, através de uma pequena janela circular construída numa parede grossa muito característica das construções já seculares, a torre da mais antiga igreja da cidade. Aliás, não só era visível como, a janela e a torre, estavam perfeitamente alinhadas. Nesta época do ano e numa espécie de cumplicidade, até o Sol seguia esse mesmo alinhamento. Era um lugar mágico herança familiar também relojoeiros e situado num bairro histórico da cidade. O edifício era constituído por um rés-do-chão que era o piso mais amplo e destinado a local de exposição e loja; um primeiro andar reservado à relojoaria “grossa”, na sua maioria relógios de parede e de mesa e no segundo andar era o atelier do Mestre que na realidade era um amplo sótão, mas o seu local preferido por beneficiar de melhor luminosidade natural, essencial para a relojoaria “fina”, havendo ainda o aspecto emocional, pois era este o local de trabalho do seu avô e posteriormente do seu pai antes deste último ter comprado, ao respectivo patrão, todo o edifício para a sua família.

Desde o dia do concerto, já o Sol havia nascido três vezes no alinhamento da torre da igreja com a janela redonda do sótão do Mestre surgindo então na porta de entrada uma figura alta, magra e com um imponente cabelo primorosamente despenteado, pensou o Mestre. Era o Maestro que finalmente vinha devolver o metrónomo Patek-Philippe. Antes dos seus olhos se hipnotizarem no tranquilo regulador do Jeagger-Lecoultre “Atmos” ainda teve tempo de dizer que os trinta e dois degraus desde o rés-do-chão não custaram a subir graças às magníficas fotos de relógios antigos penduradas nas paredes contiguas aos degraus. O Mestre ia explicar que eram fotos de relógios intervencionados pelo seu pai e por ele próprio tendo-se dado conta que se tinha instalado um grande silêncio só ficando mesmo a ouvir-se o III andamento da Sinfonia nº 2 de Rachmaninoff proveniente do vinil do atelier e que tocava baixinho proporcionando inspiração e concentração. Ao levantar a cabeça da sua bancada viu os olhos do seu amigo novamente na direcção da parede do atelier destinada exclusivamente ao “Atmos”. Nas restantes paredes havia vários relógios, mas naquela só havia mesmo o ”Atmos” e a janela com vista para a torre da igreja. Bastou o Mestre simular uma pequena rouquidão para o seu amigo como que acordar e fazer referência às tranquilizadoras 120 alternâncias por hora do “Atmos”. Também o metrónomo Patek-Philippe faz 120 batimentos, mas num só minuto pensou o Maestro. Como é possível o mundo da relojoaria conceber estas diferentes formas de medição do tempo, pensou. Não tenho a certeza se ainda continua a ser, mas sei que o “Atmos” foi a oferta protocolar do estado helvético quando recebia a visita de entidades de outros países explicou o Mestre que entretanto aproveitou e questionou também o seu amigo acerca de como tinha conseguido contar os 4’33’’ com um metrónomo que bate duas vezes por segundo? Este explicou que se tratou de uma brincadeira do clarinetista e do violoncelista do ensemble que lhe trocaram o seu relógio pelo metrónomo de bolso, mas depois eles próprios deram-lhe indicação do tempo final. Estava então explicada a preocupação inicial do Maestro ao iniciar a obra de John Cage e que alguns se aperceberam na plateia.

O Maestro partilhou então com o seu amigo os pensamentos que lhe ocorreram durante a interpretação da obra de John Cage e que se centravam nas semelhanças entre a música e a relojoaria. Inicialmente pode-se pensar que são dois mundos opostos, mas um olhar atento talvez nos ajude a entender que existe mais em comum do que inicialmente se pode imaginar? Talvez ambas as actividades até se complementem? Ao ver o seu amigo tirar decididamente os seus olhos da bancada, este percebeu que estava aberto assunto para uma pequena, mas certamente profunda conversa. Sentia-se no olhar do Mestre que este era um assunto sobre o qual já havia reflectido e tirado as suas próprias conclusões e que aguardava oportunidade para as “debater” ou não fosse ele próprio também um fervoroso melómano. Era como se aquele pensamento sobre o facto de os músicos subdividirem ou ampliarem os tais sessenta segundos por minuto que os relojoeiros tanto se esforçam por manter tivesse conseguido criar um efeito, premeditado, e que era fazer o Maestro reflectir sobre as semelhanças entre estas duas formas de arte.

O Mestre convidou então o seu amigo a olhar pela janela do seu atelier e apreciar o imponente relógio da torre da igreja pedindo-lhe o exercício de se imaginar no séc. XIV, altura da sua construção. Era recorrente associarem-se sons e horas. Os sinos diziam-nos então as horas que marcava o relógio. Temos de ter em atenção que muitas pessoas não sabiam ver as horas e era o número de badaladas que indicava a altura do dia em que nos encontrávamos.

Maestro: Mas os relógios tinham ponteiros.

Mestre: Nem todos dispunham de ponteiros. Havia alguns relógios com um único ponteiro. Os relógios e respectivos sons serviam também para indicar e chamar os fiéis para as cerimónias canónicas…

Maestro: Engraçado o termo utilizado, pois canónico tem uma certa ligação com cânone, termo musical indicado para definir uma estrutura de composição musical em que a melodia vai passando sucessivamente de voz para voz. Vejo que tal como na música, a igreja teve um papel importante também na relojoaria? Talvez possa ser outro aspecto partilhado entre estas artes?

Mestre: Também estou convencido disso. Ao longo do séc. XIV estes fantásticos relógios, inicialmente construídos na França e na Inglaterra, espalharam-se um pouco por toda a Europa. A evolução destes fabulosos maquinismos prosseguiu ao longo dos anos e eram até já importantes atractivos e demonstravam também, a par das belíssimas arquitecturas das igrejas e catedrais, as possibilidades e a importância da igreja. Com a evolução assiste-se a mecanismos destes já mais elaborados e que contavam até com autómatos. Portanto logo desde o início havia horas e sons numa espécie de cumplicidade.

Maestro: Aliás, falando em relógios de torre e talvez avançando um pouco no tempo, o próprio nome “Big Ben” muitas vezes atribuído à torre do parlamento britânico é na realidade o nome do seu enorme sino. Outro compromisso entre relógios e música, sorriu.

Mestre: Sim, e é também neste relógio que se pode ouvir a melodia “Westminster”, tão difundida em casa de praticamente todas as pessoas que adquiriram um relógio de parede, pois gradualmente e com a invenção da corda (mola real) o relógio começou a poder também chegar a casa das pessoas. Maioritariamente os relógios de parede já tinham a referida melodia “Westminster”, entre outras como a “Avé Maria” por exemplo. A música mais uma vez acompanha estas maravilhosas máquinas. Na sua diminuição gradual de tamanho para relógios de mesa, despertadores, de bolso e de pulso, os sons não deixaram de fazer parte destas máquinas chegando até a constituir complicações que demonstravam o domínio técnico dos seus fabricantes.

Surge-me por exemplo o "Revox", para aqueles que não gostavam de acordar com aquele som tremendo dos despertadores normais, que tinham o mérito de não deixar ninguém a dormir. Havia, como disse, sugestões como o "Revox" que permitiam um acordar mais calmo e tranquilo, pois este relógio dispõe de uma caixa de música que toca uma agradável melodia para ajudar a um despertar mais tranquilo. Mas se nestes relógios, o uso dos sons, não deixa de ser fascinante, é nos relógios de bolso e de pulso que o uso dos sons assume verdadeiramente contornos de virtuosismo.

Maestro: Virtuosismo é um termo musical que se refere normalmente a um grande domínio técnico de um instrumento musical.

Mestre: E é isso precisamente que eu imagino quando penso na diminuição do tamanho destes mecanismos ao ponto de caberem na caixa de um relógio de bolso ou de pulso. Um regalo não só para os ouvidos mas também para os próprios olhos como se fosse um quadro feito com peças mecânicas meticulosamente elaboradas. Quase todos os grandes fabricantes fazem questão de apresentar uma complicação com som, mas ainda assim há fabricantes que conseguem algum destaque, ou porque utilizam termos musicais para designar os seu relógios como é o caso dos “Christophe Claret Maestro ou Maestoso”, mas ainda mais no caso dos relógios “Boegli” que se dedicam quase exclusivamente aos relógios musicais usando também praticamente só termos musicais para os designar e reproduzindo neles melodias imortais da história da música.

Quase sempre o sistema mais utilizado é o de pequenas palhetas metálicas com diferentes comprimentos e assentes sobre um cilindro com pequenas saliências e que ao girar vai produzindo diferentes melodias rigorosamente afinadas ao libertar as referidas palhetas. A “sonnerie” constitui assim uma importante complicação relojoeira que praticamente todos os grandes construtores de relógios fazem questão de ter. Nos relógios de bolso e pulso e com a mesma finalidade, é também habitual optar-se por uma ou mais barras metálicas que ao serem percutidas por pequenos “martelos” produzem diferentes sons.

Maestro: Fascinante! Os sons são uma espécie de voz do tempo que, graças ao desenvolvimento, passou literalmente das torres de igrejas para os pulsos das pessoas. E para o futuro? Poderemos continuar a assistir a esta relação de simbiose entre a relojoaria e a música?

Mestre: Penso que sim. Creio até que essa colaboração poderá subir a outro patamar disse o Mestre acompanhado de um grande sorriso. Com o aparecimento de novos reguladores em silício há já algumas experiências em que estes são “excitados” por frequências próximas da sua frequência de vibração começando assim a vibrar de uma forma muito elevada e regular.

Maestro: Mas isso é o que nós em música chamamos de ressonância, ou seja, a vibração por simpatia de um corpo em função de uma vibração muito próxima e produzida por outro corpo. Na prática, se eu der uma nota no meu Clarinete cuja vibração é próxima da vibração da corda do Violoncelo, esta vai começar a vibrar e a produzir som sem que eu alguma vez lhe tenha tocado.

Mestre: E creio que é precisamente esse efeito que se pretende actualmente com os reguladores em silício por parte de alguns fabricantes que se encontram a desenvolver essa técnica. Aliás, talvez não seja por acaso que alguns fabricantes dão nomes como “Resonique” aos reguladores que se encontram a desenvolver como é o caso da “De Bethune” entre praticamente todas as restantes marcas de relógios. Como relojoeiro espero que esta nova técnica, se vier para ficar, possa continuar a ser reparada por nós disse sorrindo ao mesmo tempo que ao olhar pela janela se apercebeu que o relógio da torre já se encontrava iluminado por poderosos holofotes. Era sinal que a hora já não deixava prosseguir mais, mas ambos sabiam que havia muita conversa interessante acerca da cumplicidade entre estes dois mundos aparentemente distantes, mas agora, pelo menos para eles os dois, certamente mais próximos que o que inicialmente imaginavam e tudo graças ao comentário do Mestre relojoeiro acerca dos músicos criarem relações de tempo com os rigorosos sessenta segundos por minuto que os relojoeiros mantêm rigorosamente ao longo dos séculos. Na despedida ambos tiveram a certeza de que há entre estes dois mundos mais em comum do que inicialmente se poderia pensar. Ambos sabiam que o conteúdo desta conversa constituía apenas uma gota de água num oceano que é a cumplicidade entre estas duas artes.


Para um músico, a arte da relojoaria talvez seja o complemento/equilíbrio de uma necessidade mais técnica e material, enquanto para o relojoeiro talvez a música seja a componente mais contemplativa e “espiritual”.






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