O que vão ler de seguida passou-se ontem, sexta-feira, em Lisboa. Este não é o artigo comum do IPR, não vamos falar acerca de curiosidades do mundo actual da relojoaria, nem dos últimos lançamentos ou dos últimos eventos. O que se passou ontem não mudou a vida dos envolvidos para sempre. Resultou apenas numa boa história digna de ser partilhada.
Tratou-se de um simples encontro no qual demasiadas pessoas levaram dois relógios, um em cada pulso, nada de estranho até aqui. Vimos uma exposição de pintura, depois vimos outra exposição de pintura. Fomos todos jantar falámos de coisas que nos tinham acontecido, quanto mais raras melhor. Para além do interesse pelos relógios, todos partilhávamos a curiosidade geral pelo mundo. Nada de novo, até aqui. Quando o jantar terminou, seguimos caminho, cada um para seu lado. Alguns sem saberem bem ainda o nome uns dos outros, todos com pleno conhecimento dos relógios que estavam nos pulsos. O costume. Eu apanhei um táxi, daqueles que se pedem por telefone, mas na verdade não são táxis. O condutor era um tipo indiano de Querala, que dizia, com muito orgulho, ser a primeira terra que Vasco da Gama visitou. Falava muito bem português. A nossa viagem não foi tão longa como a do Vasco da Gama, mas houve tempo para me contar uma história absurda sobre relógios. Perguntei-lhe se podia gravar a história, tenho memória fraca e gosto muito de histórias, especialmente as que são contadas por tipos que não conheço de lado nenhum em situações insólitas. Aqui fica a transcrição:
O meu avô sempre teve um ar completamente perdido. Deixou-me um relógio de bolso. Nunca funcionou. Ou melhor, funcionou sempre, mas nunca mexeu os ponteiros.
É um relógio de bolso normal, três ponteiros e caixa de prata. O relojoeiro a quem o levei a primeira e última vez chama-se Sísifo. É um estrangeiro que tem uma relojoaria na montanha de Anamudi, perto de Querala, é pouco mais alta que o Pico. A relojoaria fica numa zona alta da montanha. Embora não haja casas nas redondezas, tem o nº42 na porta. A vista daquele sítio é incrível. Da sua bancada de relojoeiro, por vezes, conseguem ver-se os golfinhos e as baleias a passar no canal. Aceitou consertar-me o relógio, que afinal não tinha conserto. Esta é das histórias mais absurdas que já vivi. Lembro-me de tudo o que foi dito como se fosse ontem.
- Bom dia, o senhor é que é o conhecido Sísifo de Anamudi?
- Sim, é assim que me conhecem por aqui. O que o traz por cá?
- O relógio do meu avô que teima em não mover os ponteiros.
- Mas trabalha?
- Sim, dou-lhe corda de vez em quando, trabalha, mas não dá horas.
- Realmente um relógio que não dá horas não faz sentido.
- Não faz grande sentido não, mas recorda-me o meu avô. Era inglês. Este relógio também deve ser.
- E como se chamava o seu avô?
- Arthur Philip Dent.
- Há muitos ingleses aqui na zona. Nenhum com esse nome.
- Ele era de outra zona.
- Vamos ver então essa máquina.
Já conheci muitos relojoeiros, este foi o mais entusiasmado de todos. Olhava para os relógios como se olhasse para a próxima aventura intergaláctica. Tinha um ar intrépido, o cabelo despenteado pela ventania da montanha, e os olhos esbugalhados. À medida que observava o mecanismo, os “hum” passaram a “hummm”.
- Então, consegue pô-lo a dar horas?
- Não faço a mais pálida ideia. A última manutenção foi recente? Parece muito limpo.
- Não, nunca teve uma manutenção, e olhe que deve ter mais de 100 anos.
- Vou ficar cá com ele, esta noite vejo que se passa.
Saí bastante desapontado, normalmente há um diagnóstico. Voltei no dia seguinte, estava lá às 7h, antes da oficina abrir. O Sr. Sísifo apareceu pouco depois, carregado com um saco muito pesado às costas, um ar esbaforido e um cão muito lento.
- Bom dia.
- Bom dia.
- Isso está pesado, quer ajuda?
- Não, obrigado, são só umas pedras, é a minha forma de fazer desporto.
Dito isto, pousou o saco, virou-o e despejou umas pedras pesadas que rolaram lá para baixo. Ficou a vê-las até ao último movimento e depois, em tom de desabafo, suspirou:
- Qualquer dia ainda aleijo alguém com esta brincadeira. Mas vamos ao que interessa, estive a tentar perceber o que se passa com esta máquina infernal a noite toda. Mal preguei olho!
- Eh pá, é assim tão complicado? Só tem três ponteiros.
Olhou-me nos olhos, aliás, olhou-me para dentro dos olhos, e disse-me com uma voz de sofrimento:
- Este relógio não tem conserto.
- Todos os relógios têm conserto! - disse-lhe eu, a repetir o que um relojoeiro me tinha dito uma vez numa loja de fornituras, na Baixa de Lisboa.
- Nem todos têm conserto. Apenas os que estão avariados têm conserto. E este não está avariado. Simplesmente não mexe os ponteiros.
Tinha acabado de me oferecer esta pérola de sabedoria, claramente de quem atura clientes há muitos anos, quando nesse preciso momento, aparece o cão mais bizarro que vi na minha vida e desata a ladrar. Era um animal enorme, marreco e com uma pata mais curta que a outra.
- Kierkegaard sossega!
Não é um nome comum para um cão. Mas talvez seja apropriado para este, pensei.
- Peço imensa desculpa, este cão por vezes passa-se. Ficou assim desde que passou uma noite preso na Basílica de Santa Maria, lá em baixo. Assusta-se por tudo e por nada. Passa o dia deitado de olhos abertos, é um cão muito pensativo. Mas como lhe estava a dizer, os ponteiros não se movem porque foram feitos, precisamente para não se moverem. O mecanismo trabalha, é possível acertar os ponteiros mas este relógio não foi feito para dar horas. O movimento do relógio está separado dos ponteiros por uma ponte que o cobre completamente. Isto não é fácil de explicar. Alguém fez um movimento de relógio, e depois um mostrador, com ponteiros, mas fê-lo de forma a não haver comunicação entre eles. Os ponteiros estão cravados no próprio mostrador. Não têm ligação ao movimento. Está a perceber?
- Sim, estranho, mas passou a noite toda com o relógio para descobrir isso?
- Não. Ainda o senhor não devia ter chegado lá a baixo e já eu tinha percebido o que se passava. Passei a noite toda a pensar que sentido tem inventar um relógio que não dá horas. É que ainda por cima está muito bem feito! O mecanismo está todo gravado. E se nunca teve manutenção, ainda mais incrível é! Parece que acabou de sair da fábrica. Não tem desgaste nenhum.
- Ok. É estranho, sim. O meu avô também era um tipo estranho.
- Sabe onde é que ele comprou o relógio?
- Na Dinamarca, em Copenhaga, pelo que me disseram. Esteve lá muitos anos.
- Não sei nada sobre a Dinamarca. Olhe, mas não consigo deixar de pensar nisto. Tem de haver uma resposta.
Sentámo-nos os dois virados para o mar. Passámos a manhã toda a conversar sobre as possíveis razões para se inventar um relógio que não dá horas. Ao fim da manhã, com o Kierkegaard aninhado aos meus pés, com a sua marreca e a sua pata curta, muito atento ainda assim a qualquer movimentação católica nas proximidades, chegámos a várias conclusões.
Primeiro, esta máquina, não é necessariamente um relógio, nasceu sem propósito definido. Este será definido em função da necessidade ou vontade do seu utilizador.
Segundo, não devemos perder tempo a procurar um sentido para a sua invenção, a não ser aquele que encontrarmos dentro de nós.
Terceiro, possivelmente, entre mim, o relojoeiro e o cão, o cão deve ser o que mais sabe sobre este assunto.
Quarto, tudo isto é absurdo, nunca vamos chegar a conclusão nenhuma e devemos estar em paz com esta ideia.
Quinto, pensar sobre este assunto é perder tempo, porém como esta máquina não dá as horas, não se perde nada.
A verdade é que desde esse dia uso o relógio diariamente. Sempre que sinto que a vida perde o sentido tiro-o do bolso, olho para ele, e apesar de nunca encontrar sentido algum para o absurdo da vida, sinto-me muito melhor.
Comentei que a história que me tinha contado não me era nada estranha. Já tinha lido algo semelhante numa revista há uns anos. Ainda assim perguntei-lhe se tinha o relógio com ele. Disse-me que sim, tirou-o do bolso do casaco. Era um relógio dourado, com mostrador com guilloché, branco, ponteiros azulados, a única coisa estranha era que dizia que tinha 42 rubis em baixo. Meti-o no ouvido e fazia tictac, os ponteiros não se moviam realmente. É possível que fosse apenas um relógio avariado e uma grande mentira, mas já aprendi há uns anos que a vida é curta de mais para permitirmos que a realidade estrague uma boa história.
Para os que gostam da realidade: desta linha para cima há muito pouco de verdade.
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