A Padronização do Tempo
- Nuno Margalha
- 5 de jul.
- 10 min de leitura

A realidade nasce nas nossas mãos. Se temos dúvidas sobre a existência de algo, esticamos o indicador e tocamos-lhe. O teclado do seu computador ou o vidro do seu telemóvel são reais, existem. Os seus dedos conseguem confirmá-lo claramente. Nós próprios sabemos que existimos neste mundo. Caso tenha dúvidas, pode confirmá-lo de duas formas: a primeira é dar um beliscão no braço, uma técnica muito utilizada. Pode também, neste preciso momento, perguntar à pessoa mais próxima se existe. Vamos aguardar. A resposta foi afirmativa? Então, é porque existe. Foi negativa? Confirme se a pessoa do lado existe mesmo, estique o indicador e toque-lhe. Existe? A conclusão da experiência fica por sua conta. As nossas mãos parecem, desta forma, ser o berço da realidade. Será mesmo assim?
Tudo o que fazemos fazemo-lo no nosso mundo, não conseguimos esticar o indicador e tocar noutros mundos ou mesmo pisá-los. Talvez seja por esta razão que é tão difícil acreditar na existência de mundos para além do nosso. Segundo uma das poucas teorias que tentam esclarecer-nos acerca deste assunto, existem outros mundos nos quais nós próprios também existimos. Os físicos, a partir do vertiginoso topo da sua criatividade, baptizaram esta teoria como «Interpretação dos Muitos Mundos». O autor da ideia é Hugh Everett III. Aos 12 anos Hugh Everett III enviou uma carta a Albert Einstein para esclarecer uma questão sobre o que aconteceria se uma força impossível de deter agisse sobre um objecto imóvel. A resposta foi a seguinte:
«Caro Hugh: não existe tal coisa como uma força irresistível e um corpo imóvel. Mas parece haver um jovem muito teimoso que abriu caminho vitoriosamente através de estranhas dificuldades criadas por ele mesmo para esse fim. Atenciosamente, A. Einstein».
Talvez tenha sido esta resposta do maior génio da física que o motivou a seguir uma carreira de físico, talvez tenham sido as histórias da sua mãe, ou talvez os estudos sobre os projécteis da espingarda do seu pai. Não saberemos. O que sabemos é que Hugh Everett III foi, ele próprio, um génio em várias áreas e criou uma das soluções mais interessantes para nos esclarecer acerca do funcionamento da mecânica quântica. A sua Interpretação dos Muitos Mundos é actualmente aceite na física como uma das principais teorias da mecânica quântica, mas nem sempre foi assim.
A INTERPRETAÇÃO DE COPENHAGA

Em 1912, um empresário Belga, Ernest Solvay, criou as Conferências de Solvay (1), realizadas de três em três anos. A quinta conferência, que decorreu em Outubro de 1927, acerca de electrões e fotões, foi uma das mais importantes de todos os tempos. Nela, participaram 29 cientistas, dos quais 17 tinham ganhado, ou viriam a ganhar, o prémio Nobel. Entre eles, estavam nomes conhecidos, como Albert Einstein, Niels Bohr, Max Planck, Erwin Schrödinger. Nesta conferência, discutiu-se a recém-formulada teoria quântica, especialmente num famoso debate entre Einstein e Bohr acerca do comportamento do electrão. A famosa «Interpretação de Copenhaga» surgiu desta conferência. Para a compreendermos, precisamos antes de conhecer a descoberta de Schrödinger, dois anos antes, em 1925.
Schrödinger demonstrou, através da sua equação, que embora numa visão macroscópica do mundo a segunda lei de Newton (F = ma) obtivesse bons resultados, a nível quântico isso não acontecia.
A equação de Schrödinger permite então calcular a energia dos orbitais dos electrões, e demonstra que não é possível prever a posição exacta de um electrão. Esta impossibilidade deve-se ao facto de os electrões se encontrarem em superposições, ou seja, em várias posições, em simultâneo. Se estão em várias posições em simultâneo, pode dizer-se que não se comportam como partículas, mas, sim, como ondas. Porém, ao observarmos um electrão vêmo-lo como se se tratasse de uma partícula. A Interpretação de Copenhaga defende, então, que um electrão se comporta como uma onda, mas, quando é observado, a sua função de onda colapsa e passa a revelar-se como sendo uma partícula. Foi precisamente esta a ideia de Bohr da qual Einstein discordou. Conta-se que, na sequência deste debate, Einstein terá proferido a sua famosa frase:
«Deus não joga aos dados»
Referindo-se ao facto de a solução apresentada por Bohr, para explicar a transição entre onda e partícula, assentar numa probabilidade, e de ser para além disso, dependente de um observador. A resposta de Bohr foi simples:
«Einstein, pare de dizer a Deus o que fazer».
Após anos a ver o mundo pelos olhos da física clássica de Newton, estes génios estavam perante uma realidade impossível de confirmar. O autor da equação que originou toda esta controvérsia, Schrödinger, achava, ele próprio, que a ideia do colapso da função de onda era disparatada. Ao ponto de sugerir uma das mais espirituosas experiências da Física, conhecida, actualmente como a experiência do Gato de Schrödinger.
O GATO DE SCHRÖDINGER

A experiência do Gato de Schrödinger procura exemplificar a aplicação, sem sentido, da Interpretação de Copenhaga a objectos comuns do dia a dia. Consiste, simplesmente, em colocar um gato numa caixa com um frasco de cianeto, um composto radioactivo, e um medidor de radiação. De acordo com a física quântica, os átomos da substância radioactiva podem decair, ou não, durante o período da experiência. Se as partículas da substância radioactiva decaírem e, portanto, libertarem radiação, o frasco com o veneno será partido e o gato morrerá. Se as partículas não decaírem, o gato viverá. Segundo a Interpretação de Copenhaga, até se abrir a caixa, o gato estará simultaneamente vivo e morto. Ao abrir a caixa, porém, o observador verá apenas ou um gato vivo, ou um gato morto. Embora esta não seja uma teoria fácil de admitir, como referiu Einstein, até aos dias de hoje, tem sido largamente aceite.
A INTERPRETAÇÃO DOS MUITOS MUNDOS

Trinta anos após a quinta Conferência de Solvay, Hugh Everett defendeu a sua tese de doutoramento, na qual sugeriu, heroicamente, uma solução para o problema de Bohr, então mundialmente reconhecido. Após a defesa do seu doutoramento, o orientador da tese de Everett, conseguiu que Bohr aceitasse recebê-lo. Contudo, segundo o relato da esposa de Everett, Bohr não aceitou sequer tocar no assunto, nem tão pouco o recebeu.
A proposta de Everett era bastante simples, sugeria que apenas se recorresse à equação de Schrödinger para explicar o comportamento dos electrões, nada de mais até aqui. A ideia seguinte foi, porém, um pouco mais ousada.
Perante o problema da medição da posição do electrão, Everett sugeriu que a simples observação de um electrão criaria um novo mundo, onde o mesmo electrão surgiria como uma partícula.
Este mundo seria diferente do mundo anterior, no qual a partícula ainda se comportava como uma onda. À proposta de Everett deu-se o imaginativo nome de Teoria dos Muitos Mundos. Segundo a Interpretação dos Muitos Mundos, tanto o gato de Schrödinger, como o observador, como todo o mundo, estão numa superposição, o que é, evidentemente, mais coerente. É esta a razão pela qual terá naturalmente de ser considerada a existência de vários mundos. Até aos dias de hoje, a Interpretação dos Muitos Mundos é uma das poucas teorias que apresentam uma solução para o problema da medição da posição dos electrões em física quântica. O seu reconhecimento não é apenas feito por entusiastas de ficção científica, mas também por físicos conceituados como Sean Caroll.
AS MÃOS E A REALIDADE
A ideia da nossa presença em vários mundos em simultâneo é desconcertante. A vastidão do desconhecimento que a física quântica revelou é assustadora. Ficámos mesmo sem perceber o que é a própria realidade. Resta-nos considerar que é apenas no nosso pensamento que a realidade nasce, vive e morre. Afinal de contas, é no pensamento dos nossos pais que começamos a existir, mesmo antes de nascermos. Não nos tornamos realidade quando alguém nos toca. As nossas mãos não tornam real o mundo que os nossos pés pisam. Não é possível tocar na realidade, nem muito menos tornar real aquilo em que tocamos.
Sabemos agora que a realidade nos escapa das mãos e que padece de problemas existenciais. E desde o fim-de-semana passado, descobrimos que o tempo sofre de males semelhantes. Quanto à realidade, pouco podemos fazer. Quanto ao tempo, sendo o IPR uma Escola de Relojoaria, temos pelo menos a obrigação de tentar esclarecê-lo — mesmo que, por mais absurdo que pareça, se considere que não existe.
O QUE É O TEMPO
No universo da relojoaria, o tempo não é apenas uma abstração filosófica ou um valor sentimental: é uma unidade física que deve ser medida com exactidão. A história da padronização do tempo percorre um caminho notável, em que se destaca a Conferência Geral de Pesos e Medidas (CGPM) — o fórum internacional responsável pela definição oficial das unidades fundamentais do Sistema Internacional (SI), entre as quais o segundo.
A Convenção do Metro: a génese da padronização

Em 20 de Maio de 1875, vinte nações — incluindo Portugal — assinaram em Paris a Convenção do Metro. Este tratado internacional estabeleceu os alicerces para uma uniformização mundial das unidades de medida, o que deu origem ao Bureau International des Poids et Mesures (BIPM), sediado em Sèvres, nos arredores de Paris.
Inicialmente centrado na definição do metro e do quilograma, o trabalho do BIPM alargou-se às outras grandezas físicas — entre elas, o tempo. A coordenação destas actividades passou a estar a cargo da Conferência Geral de Pesos e Medidas, que se reúne regularmente desde 1889 para aprovar definições, rever normas e garantir a coerência do sistema internacional de unidades.
O segundo astronómico: uma definição instável
Durante séculos, o tempo mediu-se por observações astronómicas.
O segundo era definido como a 1 ⁄ 86400 parte do dia solar médio — isto é, a vigésima quarta parte de uma rotação da Terra dividida por 3600.
Contudo, verificou-se que a rotação terrestre não é constante. Sofre pequenas variações imprevisíveis, de origem geológica, atmosférica e gravitacional.
Esta instabilidade tornou-se inaceitável para aplicações que exigem uma precisão extrema, como a navegação por satélite, a sincronização de redes de telecomunicações ou a relojoaria científica. Era necessário encontrar uma referência invariante, presente em toda a natureza.
O segundo atómico: a revolução da exactidão
A resposta chegou através da espectroscopia e da física quântica. Os átomos, ao transitarem entre níveis de energia, emitem radiação com uma frequência específica. No caso do césio-133, essa frequência é notavelmente estável.
Em 1967, a 13.ª Conferência Geral de Pesos e Medidas aprovou uma nova definição do segundo:
"O segundo é a duração de 9 192 631 770 períodos da radiação correspondente à transição entre dois níveis hiperfinos do estado fundamental do átomo de césio-133."
Este momento representou um marco histórico. Pela primeira vez, a unidade de tempo deixou de depender dos astros e passou a depender de um fenómeno imutável da física atómica. Desde então, os relógios atómicos tornaram-se o padrão máximo de precisão.
De Paris para o mundo: os relógios ao ritmo do césio

A CGPM continua a supervisionar a evolução das definições do SI. Em 2019, redefiniu o quilograma, o ampere, o kelvin e a mole com base em constantes universais. A unidade de tempo, contudo, manteve-se ancorada na radiação do césio, embora se prepare o caminho para futuros padrões ainda mais precisos — como os relógios de rede óptica.
Relógios de rede óptica
Nos últimos anos, os chamados Relógios de rede óptica tornaram-se os instrumentos mais precisos de medição do tempo. Diferem dos relógios atómicos de césio por utilizarem átomos neutros aprisionados numa rede óptica – uma estrutura de luz laser que imobiliza os átomos em posições fixas.
Estes átomos são excitados por radiação óptica, com frequências muito superiores às micro-ondas usadas no césio, o que permite uma resolução temporal incomparável.
A precisão destes sistemas é tal que, segundo os dados mais recentes, o erro acumulado seria inferior a um segundo em 30 mil milhões de anos.
Embora ainda não se tenha substituído oficialmente o césio como referência do Sistema Internacional, os relógios de rede óptica são os principais candidatos à futura redefinição do segundo, estando actualmente em teste em laboratórios nacionais de metrologia em todo o mundo.
Portugal: um país sem Hora Legal
Em Portugal actualmente pode-se dizer que o tempo não existe com mais propriedade do que noutros países, pois após 145 anos ao serviço do país, o Observatório Astronómico de Lisboa deixou de ser a entidade emissora da Hora Legal.
Desde 2019, alterações legislativas e institucionais criaram um vazio de competências, tornando impossível cumprir o que o Decreto-Lei n.º 279/79 previa. A responsabilidade pela emissão do tempo oficial deverá ser transferida para o Instituto Português da Qualidade, mas o processo legislativo continua indefinido.
Enquanto isso, o país permanece sem uma entidade emissora activa e sem um único relógio público que marque oficialmente o tempo.
Portugal, que outrora teve um dos observatórios mais prestigiados da Europa, deixa assim de ter a sua própria hora legal.
NOTAS:
(1) As Conferências Solvay nasceram da visão e generosidade de Ernest Solvay (1838–1922), um industrial e químico belga que fez fortuna com o desenvolvimento do processo químico de produção de carbonato de sódio. Convencido de que o progresso científico exigia o diálogo entre os maiores pensadores do seu tempo, Solvay fundou, em 1911, uma série de conferências científicas de alto nível, que reuniram os físicos mais influentes do mundo num ambiente de debate livre e rigoroso. A sua iniciativa culminou na célebre quinta conferência de 1927, dedicada à teoria quântica, onde se enfrentaram duas concepções da realidade: a visão determinista de Einstein e a interpretação probabilística de Bohr. Ernest Solvay não foi apenas um mecenas: foi o arquitecto de um espaço onde a ciência teve a liberdade de questionar os seus próprios fundamentos. Embora estas conferências não tenham definido normas metrológicas, foram cruciais para a construção teórica que sustenta a forma como hoje se mede o tempo — nomeadamente através da física quântica que sustenta os relógios atómicos.
Referências
Livros
Kragh, H. (1999). Quantum Generations: A History of Physics in the Twentieth Century. Princeton University Press.
Carroll, S. (2019). Something Deeply Hidden: Quantum Worlds and the Emergence of Spacetime. Dutton Books.
Byrne, P. (2010). The Many Worlds of Hugh Everett III. Oxford University Press.
Heisenberg, W. (1958). Physics and Philosophy. Harper.
Quinn, T. J. (2012). From Artefacts to Atoms. Oxford University Press.
Rovelli, C. (2017). The Order of Time. Allen Lane.
Pais, A. (1982). Subtle is the Lord: The Science and the Life of Albert Einstein. Oxford University Press.
Sites institucionais e científicos
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