Entre o Tempo e o Transe: O Relógio de Bolso na História da Hipnose (Séculos XIX–XX)
- Sílvio Pereira
- há 5 dias
- 4 min de leitura
Sílvio Pereira

A relação entre o relógio de bolso e a hipnose tornou-se um dos mais persistentes arquétipos da cultura ocidental. Mais do que um simples acessório, o relógio assumiu-se como instrumento técnico, símbolo performativo e objeto de autoridade no imaginário hipnótico dos séculos XIX e XX. Este artigo propõe uma análise historiográfica, estética e funcional dessa ligação singular, dando particular atenção à forma como a relojoaria foi involuntariamente inscrita no vocabulário visual da psicanálise, da medicina e do espectáculo.
O Século do Fascínio: A Convergência entre Relojoaria e Magnetismo
No século XIX, um tempo marcado por descobertas científicas, pseudociências e salões de espectáculo, o relógio de bolso era o companheiro natural de médicos, aristocratas, intelectuais e artistas. Era símbolo de estatuto, precisão e modernidade — mas também de ritualidade.
O magnetismo animal de Franz Anton Mesmer e as práticas dele derivadas introduziram uma linguagem gestual carregada de dramatismo. A presença de objectos brilhantes ou metálicos era comum nas sessões de magnetização, e o relógio de bolso encaixou-se, de forma quase inevitável, na estética da época.

Entretanto, o cirurgião escocês James Braid (1795 – 1860) viria a revolucionar a compreensão do fenómeno hipnótico ao reconhecer que a fixação ocular prolongada num ponto luminoso poderia induzir alterações de consciência. Essa constatação científica conferiu ao relógio — compacto, metálico, reflectivo, facilmente manipulável — uma nova função.
A Função Técnica: O Relógio como Ferramenta de Fixação Ocular

Embora a hipnose moderna dispense qualquer adereço, a técnica da fixação atencional foi crucial no seu desenvolvimento histórico.
O relógio de bolso apresentava vantagens particularmente adequadas:
1. Mobilidade e Controlabilidade
O hipnotizador podia controlar a amplitude e o ritmo do movimento pendular, ajustando-os à resposta do sujeito. Poucos objectos ofereciam tal precisão manual sem recorrer a mecanismos complexos.

2. Reflexo de Luz e Brilho Metálico
Relógios de prata ou ouro polido produziam reflexos que capturavam o olhar. A estética da época valorizava intensamente o metal brilhante; como tal, o próprio design do relógio de bolso contribuía para a eficácia da técnica.
3. Regularidade Subconsciente
Mesmo quando fechado, o relógio de bolso evocava o tempo, a regularidade e a ciclicidade. Essa carga simbólica favorecia a predisposição ao relaxamento e ao abandono voluntário.
Em suma, era simultaneamente instrumento prático e símbolo sugestivo, algo que poucos objetos conseguem ser.
A Estética da Autoridade: O Relógio nas Salas de Espetáculo

Durante o final do século XIX e início do XX, a hipnose tornou-se um fenómeno híbrido: parte ciência, parte entretenimento. Oficiais militares, médicos de província e artistas de salão recorriam ao relógio tanto como ferramenta quanto como elemento cénico.
1. O Relógio como Prolongamento da Pessoa

O hipnotizador clássico — sobretudo no imaginário vitoriano — era um homem elegante, de porte austero, vestindo fato escuro e com um relógio de corrente.
A presença do relógio reforçava a aura de autoridade, indispensável quando a sugestão psicanalítica dependia tanto da confiança quanto da técnica.
2. Performatividade e Ritual
O gesto de abrir a caixa de transporte, retirar o relógio, suspender a corrente e iniciar o movimento pendular transformou-se num ritual identificável. Para o público, era o prenúncio visível da passagem entre o natural e o extraordinário.
A relojoaria, mesmo sem intenção, viu-se integrada num teatro mental onde precisão e mistério se encontraram.
O Relógio nos Consultórios Médicos

A partir do momento em que a hipnose começou a ganhar espaço na psicanálise e na neurologia, o relógio de bolso adquiriu uma presença mais sóbria e funcional.
1. Da Cena ao Clínico
Médicos europeus como Charcot ou Bernheim não necessitavam de dramatização; ainda assim, muitos recorreram ao relógio como auxílio para indução, pela simplicidade e eficiência da técnica.
O consultório clínico, porém, transformou o sentido do objeto: passou de símbolo de espetáculo a técnica.

2. A Relojoaria como Ciência Auxiliar?
O relógio de bolso era também, no contexto clínico, um instrumento de medição — pulso, intervalos de observação, tempo de resposta. Assim, o mesmo objeto servia simultaneamente:
para medir o tempo fisiológico;
para conduzir o sujeito a um tempo psicológico alterado.
Poucos artefactos conciliam tão harmoniosamente estas duas dimensões.

Declínio, Mito e Permanência
Com a evolução da hipnose clínica e do conhecimento psicanalítico, a necessidade do relógio desapareceu quase por completo.
Técnicas modernas optam por:
indução verbal;
respiração guiada;
relaxamento progressivo;
visualização.
Contudo, o relógio persiste na memória coletiva como símbolo absoluto da hipnose.
Porquê?
Porque reúne três forças icónicas:
Simplicidade visual — um movimento pendular capta instantaneamente a atenção;
Ritualidade — o gesto tornou-se arquetípico;
Simbolismo temporal — hipnotizar é suspender o tempo; o relógio encarna precisamente essa ambiguidade.
Enquanto instrumento da relojoaria, o relógio de bolso tornou-se involuntariamente um ícone da psicanálise.
Opinião do Autor: O Relógio como Símbolo de Transição entre Eras
Na minha leitura, a associação entre o relógio de bolso e a hipnose representa uma confluência fascinante entre tecnologia, simbolismo e psicanálise. O relógio é um dos instrumentos mais perfeitos que o ser humano alguma vez concebeu: preciso, portátil, elegante. A hipnose, por seu lado, é uma das práticas mais enigmáticas e profundamente humanas. Quando ambos se encontram — no salão vitoriano, no consultório parisiense, ou nos imaginários cinematográficos — formam uma dualidade irresistível: o tempo que mede e o tempo que suspende. Creio que esta associação perdura porque traduz um desejo ancestral: controlar o tempo exterior e, ao mesmo tempo, compreender o tempo interior.
Em Suma
O relógio de bolso, longe de ser apenas um acessório nas práticas hipnóticas, tornou-se um símbolo de uma época em que ciência, espectáculo e arte do tempo se entrelaçaram profundamente. Ele recorda-nos que as peças de relojoaria têm um poder que ultrapassa o mecanismo: transportam significados, rituais, histórias — e até estados de consciência.
Para a relojoaria contemporânea, esta herança é uma oportunidade: explorar narrativas históricas que valorizem não só a precisão mecânica, mas também o papel cultural e psicanalítico dos relógios ao longo dos séculos.
Bibliografia selecionada (leitura recomendada)
J. Braid, Neurypnology (1843). Texto original que formaliza a fixação ocular e a noção de «hypnotism». Internet Archive
Artigos de síntese sobre a popularização do pêndulo e a imagem do relógio na cultura do hipnotismo. nath.world+1
Revisões modernas sobre técnicas de indução e mitos da hipnose. British Hypnosis Research
Sínteses biográficas e historiográficas sobre James Braid. historyofhypnosis.org -