Manifesto Les Tugas
- Nuno Margalha
- 4 de out.
- 9 min de leitura
Atualizado: 5 de out.

MANIFESTO
Les Tugas
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LES TUGAS SOMOS TODOS NÓS
Há sempre uma fronteira em tudo o que fazemos, em tudo o que somos. Somos o que habita o interior dessa fronteira. A fronteira de Portugal não é mais do que uma linha imaginária, tão imaginária como o próprio tempo. Também nós, fomos imaginados antes de nascermos, tal como Afonso Henriques imaginou Portugal antes de nascer. É urgente imaginar a relojoaria portuguesa.
Se é esta a linha que nos define, que define o nosso país, que define tudo o que existe, então tudo o que existe resulta de tudo o que imaginamos. Antes de existirmos, não existíamos. Agora estamos aqui, tão reais como o nosso tempo.
Um dia imaginámos o IPR: antes não havia IPR.
Agora imaginámos um relógio: antes não havia este relógio.
É contra a mordaça que é repetidamente instalada na capacidade de criar que nos movemos.
Somos necessariamente educados para limitar a nossa imaginação, essa é uma necessidade incontornável, é preciso limitar a imaginação, tal como foi preciso limitar o nosso país. O limite da imaginação é a única coisa que a define. Sem esse limite voltamos todos à terra.
A nossa pele cumpre a mesma função, limita-nos, mantém tudo o que nos compõe bem contido no nosso interior. O limite da imaginação é fundamental, contudo, o seu interior deve ser respirável, amplo como o interior de cada país.
No mundo da relojoaria português tem existido mais amor ao próprio limite do que ao que ele limita. Este amor ao limite é quase religioso. Poder-se-ia pensar que essa fronteira nos daria uma identidade mais sólida. Mas sabemos bem que não tem sido assim. Quando o amor ao limite se torna absoluto, o que surge não é identidade, mas extremismo — amor ao extremo. O extremistas apresentam-se assim mesmo: os que amam o extremo, os que amam Portugal, as suas fronteiras, os que se amam a si mesmo como se fossem um país. É fácil seguir quem defende o amor ao limite, e por isso o extremismo tem crescido sem limites nos últimos tempos.
A todos os que nos lêem: o extremismo não é amor — é medo.
Medo de que o limite não resista, medo de que aquilo que existe para lá dessa linha — e que o extremismo procura ocultar — a quebre, nos invada e nos destrua.
Nós não temos medo do limite, não temos medo das fronteiras do que somos, sabemos bem onde estão e confiamos nelas. É para nós evidente que a linha imaginária que define Portugal possui uma força que ultrapassa a própria fronteira.
Somos bravos e não cedemos a extremismos.
Não desperdiçamos tempo com medos, porque temos demasiado por realizar.
Livres desse obstáculo, abrimos espaço para tornar fértil o terreno onde há-de florescer a relojoaria portuguesa.
A falta de confiança no limite, condição de qualquer extremismo, seja ele destro ou canhoto, semeia medo e colhe ódio.
Também não temos tempo a perder com o ódio, temos mesmo muito que fazer, muito que criar.
Este é um manifesto sobre relojoaria portuguesa, esse limite não foi ultrapassado — estamos aqui para falar de relojoaria portuguesa —. E, curiosamente, parece haver hoje mais certezas sobre o que é a relojoaria do que sobre o que é português. Português é o que é Tuga. E — Tugas somos todos nós — todos os que confiam na linha imaginária que define Portugal, ao ponto de não sentirem necessidade de a vigiar constantemente. Não perder tempo com esse tipo de tarefas de evasão ao medo liberta-nos para criar.
A capacidade de criar sempre foi pouco recomendada no mundo da relojoaria em Portugal. Contamos com muito poucos criadores de relojoaria. Acreditamos que tal tenha se deva a excesso de timidez. Parece uma palavra ligeira para um assunto tão central como este, mas acreditamos que se trate mesmo de: timidez.
A timidez nasce do medo da invasão. Esse medo conduz ao extremismo, ao reforço e à vigilância constante do limite. Se o limite se rompe, o nosso conhecimento fica exposto. E, uma vez exposto, torna-se alvo de múltiplas opiniões — entre elas, inevitavelmente, algumas que possam concluir que está errado ou que é insuficiente.
Por outro lado, quando se acredita no conhecimento adquirido, graças às provas dadas ao longo de muitos anos em trabalhos que não esteve ao alcance de mais ninguém executar, o medo já não é de falhar. Aqui o medo é que esse conhecimento, que sentimos como propriedade nossa seja roubado. É um medo mais extremo, mais paralisante.
O extremismo destrói a imaginação e toda a capacidade de criar; sem imaginação, deixamos de existir. Se em Portugal não nos tornarmos criadores de relojoaria, ficaremos sempre à mercê de conhecimentos frágeis. No entanto, existem entre nós artesãos de habilidade extraordinária, capazes de produzir peças notáveis com recursos do século passado. A maioria vive dominada por um medo extremo: o de ver o seu conhecimento roubado e dessa forma a sua fonte de sustento. A presença de verdadeiros criadores de relojoaria é a única via para superar esse medo. Se um artesão acredita mais na sua capacidade do que no seu conhecimento, tem a certeza de que continuará a existir — muito para além da sua própria fronteira.
Esta é a nossa observação sobre o que acontece dentro da linha imaginária que define o nosso país. Observamos e criticamos, cumprindo assim duas das atitudes mais frequentes na relojoaria. Só que não ficamos por aí. Fazemos o que é mais raro e mais exigente: construímos.
Não nos limitamos a guardar o conhecimento, amedrontados no nosso canto. Criamo-lo e partilhamo-lo com todos.
No Manual do Aprendiz de Relojoeiro (1927), o relojoeiro Francisco Barbosa já denunciava a dificuldade de acesso ao saber técnico, observando que os antigos mestres “ocultavam sistematicamente aos aprendizes” os seus conhecimentos, obrigando-os a aprender “só depois de muitas dificuldades e de grande perda de tempo”.
No prefácio, o autor declara:
PREFÁCIO
O presente manual é destinado a elucidar as pessoas que pretendam estudar o início dos trabalhos técnicos de relojoaria. Não tem o autor outra pretensão ao apresentar este livro, senão a de auxiliar os novos, facilitando-lhes o que os antigos mestres ocultavam sistematicamente aos aprendizes, os quais só depois de muitas dificuldades e de grande perda de tempo conseguiam aprender alguma coisa de útil nesta arte. Com a sua prática de 25 anos está convencido de que este livro esclarecerá suficientemente aqueles que por curiosidade ou por necessidade se queiram entregar a trabalhos desta natureza.
Lisboa, 1927.
O autor
— Francisco Barbosa, Manual do Aprendiz de Relojoeiro. Lisboa: Livraria Pacheco, 1928, p. 5.
O Manual do Aprendiz de Relojoeiro, publicado por Francisco Barbosa em 1928, foi uma das obras que inspiraram a criação do Instituto Português de Relojoaria e da sua Escola de Relojoaria.
Tal como Barbosa procurou democratizar o acesso ao saber técnico num tempo em que o conhecimento era reservado aos mestres, também nós fundámos uma escola para transmitir abertamente todo o conhecimento relojoeiro de que dispomos.
Escrevemos diariamente sobre relojoaria há vários anos, enfrentando o desafio constante de seleccionar, entre uma imensidão de informação, aquilo que é realmente essencial e útil para todos.
Hoje, tal como em 1927, acreditamos que o progresso da relojoaria depende da partilha do saber. É por isso que estamos a construir uma rede de serviços e competências que permitirá a todos concretizar as suas próprias criações relojoeiras.
Criamos o que é necessário quando o que é necessário não existe. Sabemos que esta capacidade de criação assusta o extremismo, sentimo-lo na pele.
Criar retira o propósito ao extremismo.
A capacidade de criar é auto-regenerativa: transforma o conhecimento em algo infinito, impossível de ser contido nos extremos.
Por esta razão não somos a favor de observar e criticar. Não criticamos nos meios de comunicação o estado de conservação dos relógios públicos, não criticamos as políticas sobre a medição do tempo, nem a falta de apoios seja para o que for.
A crítica sem acção criativa é uma atitude de dependência infantil.
É claro para nós que todos desempenham funções diferentes na sociedade. O papel profissional de alguns é observar e apontar o que está mal na relojoaria, como em tantos outros campos. Mas o papel de todos deve ser não permitir que a crítica se esgote num prazer estéril, quase sádico, sem qualquer intenção de contribuir para a melhoria daquilo que se critica.
Criticar o estado dos relógios públicos, por exemplo, é útil: cumpre uma função de vigilância e de participação cívica, o que é um bom início, mas nunca deve ser um final. Pode ser sempre possível partilhar contactos, sugerir relojoeiros às entidades, angariar fundos, há um mundo de possibilidades que vão para além da simples crítica.
Não devemos ficar estagnados na crítica. Temos plena consciência da sua necessidade e reconhecemos que, muitas vezes, é a própria crítica que antecede o início das acções criativas. Mas somos totalmente contrários à crítica pela crítica. Não fazemos disso a nossa vida. Aos que vivem apenas da crítica, lembramos: permanecer no átrio é nunca descobrir a casa inteira.
Este movimento para lá da crítica define os portugueses que trabalham na indústria relojoeira em todo o mundo, sobretudo na Suíça. Eles são o expoente máximo da ideia de que Portugal vai muito para além das fronteiras que o delimitam.
Não existem números oficiais sobre a quantidade de portugueses nas fábricas de relojoaria suíça, mas sabemos que somos a 3ª maior comunidade naquele país. Sabemos que muitos dos relógios feitos na Suíça são feitos por mãos portuguesas. Sabemos também que em Portugal existem várias fábricas de relojoaria, normalmente com pouca ou nenhuma identificação à porta.
Dentro das fronteiras portuguesas, na zona do Porto, produzem-se componentes de movimentos, fazem-se polimentos e outros acabamentos de caixas, maquinam-se caixas de relógio em Aveiro, fabricam-se rubis no Fundão e correias em Castelo de Paiva.
Não é difícil concluir que a melhor relojoaria do mundo nasce de mãos portuguesas — mãos que recebem salários pagos a partir da Suíça.
Afinal, para que um relógio ostente a designação Swiss Made, basta que 60% dos custos de fabrico sejam gerados em território suíço. O movimento tem de ser suíço, o que significa o seguinte: pelo menos metade do valor das suas peças deve ter origem suíça e que 60% dos custos de fabrico do próprio movimento devem ser realizados na Suíça. O desenvolvimento técnico, incluindo o projeto e a prototipagem, deve ocorrer em território suíço. Por fim, o relógio tem de ser montado na Suíça e a sua inspeção final deve também ser feita no país.
A lei que define o Swiss Made estabelece um limite baseado no valor e não no local onde cada peça é fabricada. O que deve, obrigatoriamente, decorrer em território suíço é apenas o desenvolvimento técnico: projecto e prototipagem, a montagem e a inspeção.
Em Portugal não existe uma lei semelhante; se existisse, seria simples designar um relógio como “Portugal Made”. Não precisamos de uma indústria relojoeira instalada em território português para desenhar, montar e inspecionar relógios — esta é a perspectiva suíça. É a perspectiva do país que produz os melhores relógios mecânicos do mundo.
Sejamos sinceros: se são mãos portuguesas que fabricam os melhores relógios mecânicos do mundo — muitas delas até em território português — então falta-nos apenas romper com o extremismo crítico que nos tem paralisado até hoje e começar, finalmente, a criar.
Não se devem ouvir as vozes que dizem que nunca será possível produzir relojoaria fina em Portugal, pois, é não só em Portugal que ela é produzida como são as mãos portuguesas que a produzem, provavelmente em grande maioria na Suíça, na verdade.
Não se devem ouvir vozes que dizem que a relojoaria é uma arte extinta, ela está bem viva e fala português.
Não se devem ouvir vozes que dizem que não temos conhecimento técnico, temos todo o conhecimento necessário, e ainda nos sobra a criatividade.
Não acreditamos que a qualidade de um relógio se possa associar ao país que apregoa produzi-lo.
Estamos no mundo confiantes na nossa portugalidade, por isso, sem medo somos:
— Les Tugas —
Escolhemos esta expressão e utilizamo-la com um tom humorístico porque é esse o tom de quem não é um extremista amedrontado. Os melhores relógios costumam ser associados a países francófonos, mas muitos deles nascem, em grande parte, das mãos de Tugas, por isso somos todos Les Tugas.
Os portugueses sempre souberam ser portugueses para além das suas próprias fronteiras. É a todos os que o são — firmes e confiantes na fronteira que os define como portugueses — que dedicamos este relógio.
O Les Tugas é o relógio mais tuga de sempre, projectado e desenhado em Portugal, tem no seu interior um movimento ETA 2824, um dos mais confiáveis movimentos suíços, possivelmente resultado do trabalho de muitos portugueses tanto na Suíça como em Portugal. Este movimento foi alterado por nós com a remoção de algumas peças e adição de outras.
Dentro de fronteiras produzimos: a correia, o vidro, a caixa, os próprios parafusos da caixa, os acabamentos da caixa e o mostrador. O mostrador é um gilt dial feito com técnicas manuais, com um banho de ródio e outro de prata.
O resultado é o relógio mais português da história, mas é também a criação de uma rede de serviços de relojoaria que pode servir todas as marcas que virão. Oferecemos o conhecimento através da nossa escola e disponibilizamos a rede que montámos a todos os interessados em criar relojoaria portuguesa porque:
Les Tugas — somos todos nós!
Excelente artigo!
E com uma das melhores escolas de Relojoaria da Europa.
Bem hajam pela ousadia