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O Gravíssimo roubo do futuro

Atualizado: 4 de out. de 2022

(artigo originalmente publicado na revista Espiral do Tempo 72)


O órgão “Organ/ASLAP” especialmente construído para o evento, iluminado antes da mudança de som de 5 de fevereiro numa performance planeada de 639 anos da composição de John Cage. (Markus Schreiber / Associated Press)

O mais longo concerto do mundo teve início em 2001, termina em 2640, decorre na igreja de St. Burchardi em Halberstadt, na Alemanha, e foi composto por John Cage. É um concerto demorado, tocado automaticamente por um órgão construído propositadamente para o efeito. As mudanças de nota são raras e implicam a remoção de tubos metálicos perante uma plateia divertida que aclama efusivamente o acontecimento. São 639 anos de concerto. Pode dizer-se que o andamento deste concerto é um único, gravíssimo.



Gravíssimo é o nome do andamento musical com menos batidas por minuto, menos de 19. Diz-se deste andamento que é lento. Lento por oposição ao andamento normal, moderato. Mais rápidos que os moderato são os allegro ou os vivace. Sentimentos graves, mais solenes, opõem-se a sentimentos rápidos, mais alegres. A música relaciona sentimentos com andamentos a um ponto em que não se compreende se é o andamento que forma o sentimento ou se é o sentimento que forma o andamento. Um não existe sem o outro. A condição de ser grave implica sempre lentidão. Mesmo na física, o termo ‘gravidade’ foi escolhido para designar a força que nos puxa para baixo. Aquela que, desde Einstein, sabemos que faz com que o tempo seja mais lento na planície, onde a gravidade é mais forte do que na montanha. O que na realidade faz com que os nossos pés sejam mais velhos que o nosso cabelo. O tempo não é único, mas tudo o que é grave é sempre mais lento.




Roubar o tempo ao futuro


Na música, o tempo é moldado com a mesma facilidade com que uma criança molda uma bola de plasticina. Cada melodia tem o seu tempo certo, descrito pela anotação tempo giusto. Este tempo não é rígido, pode ser roubado, tempo rubato. Roubar tempo é uma liberdade concedida ao maestro ou ao intérprete; porém, implica seja devolvido. Numa melodia, pode-se acelerar o andamento, desde que se compense essa aceleração com um retardamento exactamente igual, por forma a que, no final, a duração seja a mesma. Para permitir uma maior liberdade, acrescentaram-se anotações como a capriccio (ao capricho), a piacere (à vontade), ou ad libitum (com liberdade). Mais liberdade no tempo musical permite entender melhor os sentimentos do intérprete ou do maestro. Fora da música, quando o tempo é livre, sabe melhor; parece-nos mais natural. Quando é organizado, é mais eficaz; porém, parece-nos mais artificial. Alterar os ritmos naturais é, porém, uma condição para vivermos em conjunto e de forma civilizada. Somos os maestros do nosso tempo, mas só até certo ponto. Podemos roubar algum desde que o devolvamos, e temos raros momentos de total liberdade de andamento. Mais depressa ou mais devagar, com mais ou menos compensações temporais, há sempre a certeza de que os acontecimentos se vão sucedendo do passado para o futuro. Será sempre assim? E se conseguíssemos roubar tempo ao futuro?




Cozinhar para os netos antes de ser pai


A física esclarece-nos como obedecemos ao tempo. A música, por seu lado, esclarece-nos como pode o tempo obedecer-nos a nós. Vamos seguir a proposta da música. Um dos melhores tempos é aquele que passamos com os nossos netos, o que só acontece, naturalmente, quando temos netos. Aqui, propomos um domínio total do tempo, propomos passar tempo com os nossos netos antes de sermos pais. Propomos ir ao futuro roubar um dos melhores tempos e vivê-lo aqui e agora. Propomos: cozinhar para os netos, antes dos netos nascerem.



Cozinha Gravíssima


Os avós têm normalmente mais tempo para os netos do que tiveram para os seus filhos. Com mais tempo, têm mais liberdade para organizar os acontecimentos, como cozinhar demoradamente. O andamento musical dos avós é ad libitum (com liberdade), o que lhes permite cozinhar a capriccio (ao capricho), e comer a piacere (à vontade). Todas estas liberdades, como todas as outras liberdades, servem para ganharmos propriedade sobre a escolha de um conjunto de restrições. O que propomos aqui é uma receita que deve servir de exemplo sobre como cozinhar para os netos com total liberdade e propriedade. A principal liberdade é a de escolher, dentro dos limites da nossa existência, o tempo necessário para a confecção desta refeição. Quando os avós cozinham para os netos, fazem-no, infelizmente, sem total propriedade. Usam os alimentos semeados por outros, colhidos por outros, embalados por outros, distribuídos por outros e, por vezes, pré-confeccionados por outros. Não queremos isso. Queremos criar um novo estilo de cozinha, uma ‘cozinha gravíssima’. Gravíssima, por ser demorada, a mais demorada de todas as cozinhas. Não poderá alguma vez existir um prato mais demorado do que este. Queremos uma cozinha a tempo Giustogiusto. Esperamos que esta proposta passe naturalmente a ser a única forma de cozinhar para os netos. No livro “A Festa de Babette”, Babette fez uma óptimaótima refeição. Porém, usou o tempo dos outros, alguém criou as tartarugas para a Potage potage à la Tortuetortue, alguém pescou o esturjão e alguém lhe retirou as ovas para a confecçãoconfeção dos Blinis blinis Demidoff au Caviarcaviar, alguém caçou as codornizes para a Caille caille au Sarcophagesarcophage. Essa pessoa não foi certamente Babette. Babette não tem total propriedade sobre a sua esplêndida refeição, apenas a cozinhou e a pagou com o dinheiro que ganhou na lotaria. Aqui, queremos ter propriedade sobre a totalidade da refeição, mesmo sem ganhar a lotaria. Por essa razão, devemos começar a cozinhar bem antes de os nossos netos nascerem;, caso contrário, não teremos tempo suficiente. Ninguém consegue servir uma Açorda açorda d’alho com total propriedade sem fazer uma salina para retirar o sal, plantar uma seara para fazer o pão, um olival para fazer o azeite e uma horta para colher alhos, coentros e pimentos. Ninguém consegue servir vinho a uma mesa com total propriedade sem cortar (e não plantar) um carvalho francês, e construir com ele uma barrica de 225 Ll, onde o vinho da vinha que plantou vai estagiar. Cozinhar para os netos é uma tarefa que devemos iniciar no máximo por volta dos nossos 30 anos. Aos 50, a vinha estará pronta para a colheita, o vinho pode estagiar uns 10 dez anos. A refeição será servida aos 60. Este é um exercício de liberdade total recheado de restrições temporais moldadas até ao limite. Vamos chamar a este estilo culinário - Cozinha Gravíssima.




O Relógio



Como forma de assinalar a criação da Cozinha Gravíssima, proponho que seja construído um relógio com dois pesos oscilantes. O primeiro, por baixo do movimento; e o segundo, encaixado por baixo do mostrador como acontece no incrível Singer Reimagined Track 1. Este segundo peso enrola uma segunda corda durante 4 quatro minutos. Ao fim desses 4 quatro minutos, a corda pode estar totalmente enrolada, com mais energia, ou parcialmente enrolada, com menos energia. No mostrador, será visível uma caixa de música que tocará mais rapidamente ou mais lentamente, em função da energia armazenada na corda. Ao premir um botão, a corda começa a desenrolar e a música começa a tocar. Toca ao ritmo do nosso movimento dos últimos 4 quatro minutos, tal como os nossos netos vão degustar a refeição cozinhada ao ritmo das nossas últimas 4 quatro décadas. O relógio poderá chamar-se Gravíssimo.


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