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Os Osciladores e escapes nos Relógios: Antes e Depois da Invenção da Espiral

Sílvio Pereira



Relógio com Foliot 1610
Relógio com Foliot 1610
Relógio com Mola Espiral 1680
Relógio com Mola Espiral 1680


Este artigo traça a evolução dos osciladores usados em relógios mecânicos, desde os reguladores primitivos usados em relógios de torre e nos primeiros relógios de bolso, até à introdução da espiral (século XVII) e as consequências técnicas e práticas dessa inovação. Analisa-se o funcionamento mecânico e físico dos vários reguladores, as limitações que tornaram necessária a alteração do princípio de oscilação, o impacto cronológico na precisão e nas técnicas de fabrico, e as transformações subsequentes nos escapes e designs de relógios. No final apresentam-se considerações críticas.


1. Introdução: qual a importância do órgão regulador/oscilador?


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O órgão regulador é o dispositivo oscilante que determina a cadência do movimento de um relógio. Nos relógios portáteis (de bolso ou de pulso), o órgão regulador é, na maioria das vezes, o conjunto balanço-espiral, e forma um oscilador harmónico cujo período define a precisão do relógio. Actua como o verdadeiro “coração” do movimento, transforma a energia armazenada no tambor numa série de oscilações regulares, e assegura assim a constância da medição do tempo. A qualidade desse oscilador determina a isocronia (se o período depende ou não da amplitude), a resistência a variações da força motriz e, no fim, a precisão prática do instrumento.


Até ao início do último quarto do século XVII os relojoeiros dependiam de soluções cujo princípio era mais inercial e dependente da força aplicada, do que de um verdadeiro oscilador harmónico. A invenção e adopção da espiral transformaram o regime dinâmico do regulador, convertendo-o num oscilador aproximadamente harmónico e muito mais estável.


2. Osciladores pré-espiral: foliot e as suas variantes



"Ovo" de Nuremberg
"Ovo" de Nuremberg

2.1. O foliot — descrição e variabilidade


O foliot é, por definição histórica, uma barra transversal com pesos ajustáveis nas extremidades que oscilava para alternar as palhetas do verge escapement (escape de coroa ou roda de reencontro). Foi o regulador mais utilizado nos grandes relógios de torre e nos primeiros mecanismos portáteis. Nos relógios de bolso primitivos — os chamados Nuremberg eggs e similares, o foliot foi miniaturizado ou substituído por variantes mais compactas — por vezes uma pequena barra ou uma roda de balanço primitiva — mas o princípio era o mesmo: inércia + impulso do escape.


2.2. Física do foliot/verge

Escape de verge que mostra a roda de coroa (c), a haste de verge (v) e as palhetas (p,q).
Escape de verge que mostra a roda de coroa (c), a haste de verge (v) e as palhetas (p,q).

Foliot e Verge
Foliot e Verge

O foliot não possui uma força elástica restauradora interna; cada inversão de movimento resulta do impulso do dente da roda de escape sobre as palhetas da roda de reencontro e da inércia da massa do foliot. Consequências práticas:

  • Forte dependência da força motriz: quando a mola principal perde tensão, a amplitude e o período alteram-se sensivelmente; isso é a falta de isocronia. 

  • Recuo (recoil): o foliot tende a empurrar a roda da coroa para trás em cada ciclo, o que aumenta desgaste e introduzindo erros. 

  • Elevada sensibilidade ao atrito e às variações geométricas: desgaste das palhetas, folgas e alinhamentos afetam muito a marcha.


    Foliot de pesos (vista lateral)
    Foliot de pesos (vista lateral)

    2.3. Medidas paliativas: fusée e compensações


    Para reduzir a variação causada pela força decrescente da mola, os relojoeiros incorporavam o fusée (um cone cónico inicialmente com tripa de animal e depois com corrente) que equalizava o torque aplicado às rodagens. Apesar disso, a precisão continuava limitada — um relógio de bolso verge/foliot podia facilmente perder ou ganhar dezenas de minutos por dia.


Fusée com corrente
Fusée com corrente
Fusée com tripa de animal
Fusée com tripa de animal


3. Transição: da roda de balanço sem mola à mola de balanço com espiral


Roda de balanço sem mola (roda de foliot)
Roda de balanço sem mola (roda de foliot)
Roda de balanço sem mola (roda de foliot)
Roda de balanço sem mola (roda de foliot)

3.1. Roda de balanço sem mola


Antes da espiral de balanço, muitos mecanismos evoluiram do foliot para uma roda de balanço circular — essencialmente um foliot transformado em anel — que ocupava menos espaço e permitia melhor regulação ao deslocar massas na periferia. No entanto, esta roda continuava sem força restauradora própria, logo as limitações fundamentais mantinham-se.




3.2. A invenção da espiral (c. 1675) — Huygens, Hooke e a disputa de prioridade


No último terço do século XVII foi introduzida a espiral: uma mola helicoidal presa ao eixo da roda de balanço que fornece a força restauradora necessária para que a roda oscile como um oscilador harmónico. Há disputa histórica sobre a prioridade:


Espiral de balanço de Huygens
Espiral de balanço de Huygens

  • Christiaan Huygens publicou e patenteou desenhos que mostram o uso da espiral acoplada à roda de balanço em 1675; construíram-se relógios com o princípio e a ideia difunde-se.



Espiral de balanço de Hook
Espiral de balanço de Hook
  • Robert Hooke 

    reivindicou ter concebido a ideia anteriormente e há evidências documentais que lhe atribuem a concepção prática de aplicar uma mola ao balanço. A literatura moderna tende a reconhecer um contributo importante de Hooke, mas Huygens e os artesãos que executaram os primeiros protótipos (ex.: Thuret) foram decisivos para a implementação.


(Comentário técnico-histórico: a prioridade académica é interessante, mas, do ponto de vista técnico, o que importa é que a associação roda de balanço + espiral converteu um regulador dependente do torque num oscilador intrinsecamente determinado pela rigidez da mola e pela inércia do balanço.)


4. Efeitos técnicos e práticos da espiral


4.1. Isocronia e lei do oscilador harmónico


A espiral transforma a roda de balanço num sistema massa-mola: o período aproximado 'T' depende de 'I' (momento de inércia do balanço) e 'K' (constante elástica equivalente) segundo uma relação do tipo:


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Isto introduz isocronia parcial — o período passa a depender muito menos da amplitude — e, portanto, a marcha torna-se muito mais estável quando o escape se articula corretamente com um escape que não perturbe sistematicamente a oscilação.


4.2. Ganhos de precisão


Com a espiral de balanço, a precisão dos primeiros relógios passou de desvios de horas por dia para minutos por dia (e, em seguida, com melhorias, para segundos por dia). A melhoria foi tão grande que tornou os relógios de bolso dispositivos práticos para a medição do tempo fora do ambiente doméstico/monástico.


4.3. Mudanças no design dos escapes


Escape de Cilindro
Escape de Cilindro
Escape de âncora
Escape de âncora

A adopção da espiral destacou um problema: o antigo verge continua a transmitir impulsos ao longo de todo o ciclo e cria recuo, o que desfavorece o potencial da espiral.


Escape de detente
Escape de detente

Por isso, nos séculos seguintes surgiram escapes mais favoráveis ao funcionamento quase-livre do balanço (por exemplo, cilindro, âncora e detènte) que permitiram aproveitar plenamente as propriedades isócronas da espiral e reduzir desgaste e sensibilidade ao posicionamento.


(Em artigo posterior iremos abordar em pormenor os tipos de escape mais importantes que forem sendo desenvolvidos ao longo do tempo)


5. Consequências industriais e estéticas


5.1. Miniaturização e moda


Com um regulador mais compacto e fiável, os relógios puderam tornar-se mais finos e ornamentados — a estética do relógio de bolso evoluiu rapidamente, e o balanço com espiral tornou possível a produção em série com padrão de precisão razoável.


5.2. Implicações para a navegação e ciência


A melhoria na precisão dos cronómetros portáteis foi crucial para a navegação e para as observações científicas; a espiral é um passo fundamental na cadeia que levaria aos cronómetros marinhos do século XVIII e à resolução do problema do cálculo da longitude (embora Harrison e outros resolveram parte do problema com invenções adicionais e precisão mecânica extrema).


6. Exemplo comparativo prático


  • Relógio verge + foliot (pré-1675): dependente do fusée para equalização; precisão típica — dezenas de minutos por dia; forte sensibilidade ao torque e ao desgaste.


  • Relógio com roda de balanço + espiral (pós-1675): período definido por massa/rigidez; precisão típica inicial — minutos por dia, evoluindo para segundos por dia com escapes e regulamentações posteriores.


7. Críticas e notas de nuance (a opinião do autor)


Como especialista observador, historiador e entusiasta, considero que o foliot e o verge representam uma engenharia admirável para as suas épocas: soluções simples, robustas e manufacturáveis pelos artífices medievais e renascentistas. Contudo, são também aparelhos intrinsecamente limitados — dependentes do ambiente, da força motriz e da exímia manutenção. A verdadeira mudança de paradigma técnico foi a espiral de balanço: não apenas uma peça elástica, mas o preâmbulo para o conceito de oscilador autónomo e isócrono que a ciência e a indústria exigiam. Do ponto de vista estético e museológico, os relógios verge/foliot têm hoje um valor patrimonial e uma beleza de engenharia primitiva; do ponto de vista da relojoaria prática, a espiral é o ponto de viragem inquestionável.

8. Conclusão


A história do oscilador nos relógios mostra um percurso claro: partir de um regulador inercial comandado pelo escape (foliot/verge), para um regulador massa-mola autónomo (roda de balanço + espiral). A espiral de balanço (c. 1675) foi a inovação que permitiu transformar relógios portáteis em instrumentos realmente úteis e fiáveis. A transição exigiu também melhorias nos escapes e na manufactura das molas e rodas, abrindo caminho para a relojoaria moderna.


9. Alguns exemplares de prestígio com osciladores de foliot (antes de 1675)


Michael Nouwen 1600-1610
Michael Nouwen 1600-1610
Nicolas Forfaict 1600-1610
Nicolas Forfaict 1600-1610

Jean Rosseau 1650-1660
Jean Rosseau 1650-1660
Johann Passdorf 1630-1640
Johann Passdorf 1630-1640


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