Os Osciladores e escapes nos Relógios: Antes e Depois da Invenção da Espiral
- Sílvio Pereira

- há 3 dias
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Sílvio Pereira


Este artigo traça a evolução dos osciladores usados em relógios mecânicos, desde os reguladores primitivos usados em relógios de torre e nos primeiros relógios de bolso, até à introdução da espiral (século XVII) e as consequências técnicas e práticas dessa inovação. Analisa-se o funcionamento mecânico e físico dos vários reguladores, as limitações que tornaram necessária a alteração do princípio de oscilação, o impacto cronológico na precisão e nas técnicas de fabrico, e as transformações subsequentes nos escapes e designs de relógios. No final apresentam-se considerações críticas.
1. Introdução: qual a importância do órgão regulador/oscilador?

O órgão regulador é o dispositivo oscilante que determina a cadência do movimento de um relógio. Nos relógios portáteis (de bolso ou de pulso), o órgão regulador é, na maioria das vezes, o conjunto balanço-espiral, e forma um oscilador harmónico cujo período define a precisão do relógio. Actua como o verdadeiro “coração” do movimento, transforma a energia armazenada no tambor numa série de oscilações regulares, e assegura assim a constância da medição do tempo. A qualidade desse oscilador determina a isocronia (se o período depende ou não da amplitude), a resistência a variações da força motriz e, no fim, a precisão prática do instrumento.
Até ao início do último quarto do século XVII os relojoeiros dependiam de soluções cujo princípio era mais inercial e dependente da força aplicada, do que de um verdadeiro oscilador harmónico. A invenção e adopção da espiral transformaram o regime dinâmico do regulador, convertendo-o num oscilador aproximadamente harmónico e muito mais estável.
2. Osciladores pré-espiral: foliot e as suas variantes

2.1. O foliot — descrição e variabilidade
O foliot é, por definição histórica, uma barra transversal com pesos ajustáveis nas extremidades que oscilava para alternar as palhetas do verge escapement (escape de coroa ou roda de reencontro). Foi o regulador mais utilizado nos grandes relógios de torre e nos primeiros mecanismos portáteis. Nos relógios de bolso primitivos — os chamados Nuremberg eggs e similares, o foliot foi miniaturizado ou substituído por variantes mais compactas — por vezes uma pequena barra ou uma roda de balanço primitiva — mas o princípio era o mesmo: inércia + impulso do escape.
2.2. Física do foliot/verge


O foliot não possui uma força elástica restauradora interna; cada inversão de movimento resulta do impulso do dente da roda de escape sobre as palhetas da roda de reencontro e da inércia da massa do foliot. Consequências práticas:
Forte dependência da força motriz: quando a mola principal perde tensão, a amplitude e o período alteram-se sensivelmente; isso é a falta de isocronia.
Recuo (recoil): o foliot tende a empurrar a roda da coroa para trás em cada ciclo, o que aumenta desgaste e introduzindo erros.
Elevada sensibilidade ao atrito e às variações geométricas: desgaste das palhetas, folgas e alinhamentos afetam muito a marcha.

Foliot de pesos (vista lateral) 2.3. Medidas paliativas: fusée e compensações
Para reduzir a variação causada pela força decrescente da mola, os relojoeiros incorporavam o fusée (um cone cónico inicialmente com tripa de animal e depois com corrente) que equalizava o torque aplicado às rodagens. Apesar disso, a precisão continuava limitada — um relógio de bolso verge/foliot podia facilmente perder ou ganhar dezenas de minutos por dia.


3. Transição: da roda de balanço sem mola à mola de balanço com espiral


3.1. Roda de balanço sem mola
Antes da espiral de balanço, muitos mecanismos evoluiram do foliot para uma roda de balanço circular — essencialmente um foliot transformado em anel — que ocupava menos espaço e permitia melhor regulação ao deslocar massas na periferia. No entanto, esta roda continuava sem força restauradora própria, logo as limitações fundamentais mantinham-se.
3.2. A invenção da espiral (c. 1675) — Huygens, Hooke e a disputa de prioridade
No último terço do século XVII foi introduzida a espiral: uma mola helicoidal presa ao eixo da roda de balanço que fornece a força restauradora necessária para que a roda oscile como um oscilador harmónico. Há disputa histórica sobre a prioridade:

Christiaan Huygens publicou e patenteou desenhos que mostram o uso da espiral acoplada à roda de balanço em 1675; construíram-se relógios com o princípio e a ideia difunde-se.

Robert Hooke
reivindicou ter concebido a ideia anteriormente e há evidências documentais que lhe atribuem a concepção prática de aplicar uma mola ao balanço. A literatura moderna tende a reconhecer um contributo importante de Hooke, mas Huygens e os artesãos que executaram os primeiros protótipos (ex.: Thuret) foram decisivos para a implementação.
(Comentário técnico-histórico: a prioridade académica é interessante, mas, do ponto de vista técnico, o que importa é que a associação roda de balanço + espiral converteu um regulador dependente do torque num oscilador intrinsecamente determinado pela rigidez da mola e pela inércia do balanço.)
4. Efeitos técnicos e práticos da espiral
4.1. Isocronia e lei do oscilador harmónico
A espiral transforma a roda de balanço num sistema massa-mola: o período aproximado 'T' depende de 'I' (momento de inércia do balanço) e 'K' (constante elástica equivalente) segundo uma relação do tipo:

Isto introduz isocronia parcial — o período passa a depender muito menos da amplitude — e, portanto, a marcha torna-se muito mais estável quando o escape se articula corretamente com um escape que não perturbe sistematicamente a oscilação.
4.2. Ganhos de precisão
Com a espiral de balanço, a precisão dos primeiros relógios passou de desvios de horas por dia para minutos por dia (e, em seguida, com melhorias, para segundos por dia). A melhoria foi tão grande que tornou os relógios de bolso dispositivos práticos para a medição do tempo fora do ambiente doméstico/monástico.
4.3. Mudanças no design dos escapes


A adopção da espiral destacou um problema: o antigo verge continua a transmitir impulsos ao longo de todo o ciclo e cria recuo, o que desfavorece o potencial da espiral.

Por isso, nos séculos seguintes surgiram escapes mais favoráveis ao funcionamento quase-livre do balanço (por exemplo, cilindro, âncora e detènte) que permitiram aproveitar plenamente as propriedades isócronas da espiral e reduzir desgaste e sensibilidade ao posicionamento.
(Em artigo posterior iremos abordar em pormenor os tipos de escape mais importantes que forem sendo desenvolvidos ao longo do tempo)
5. Consequências industriais e estéticas
5.1. Miniaturização e moda
Com um regulador mais compacto e fiável, os relógios puderam tornar-se mais finos e ornamentados — a estética do relógio de bolso evoluiu rapidamente, e o balanço com espiral tornou possível a produção em série com padrão de precisão razoável.
5.2. Implicações para a navegação e ciência
A melhoria na precisão dos cronómetros portáteis foi crucial para a navegação e para as observações científicas; a espiral é um passo fundamental na cadeia que levaria aos cronómetros marinhos do século XVIII e à resolução do problema do cálculo da longitude (embora Harrison e outros resolveram parte do problema com invenções adicionais e precisão mecânica extrema).
6. Exemplo comparativo prático
Relógio verge + foliot (pré-1675): dependente do fusée para equalização; precisão típica — dezenas de minutos por dia; forte sensibilidade ao torque e ao desgaste.
Relógio com roda de balanço + espiral (pós-1675): período definido por massa/rigidez; precisão típica inicial — minutos por dia, evoluindo para segundos por dia com escapes e regulamentações posteriores.
7. Críticas e notas de nuance (a opinião do autor)
Como especialista observador, historiador e entusiasta, considero que o foliot e o verge representam uma engenharia admirável para as suas épocas: soluções simples, robustas e manufacturáveis pelos artífices medievais e renascentistas. Contudo, são também aparelhos intrinsecamente limitados — dependentes do ambiente, da força motriz e da exímia manutenção. A verdadeira mudança de paradigma técnico foi a espiral de balanço: não apenas uma peça elástica, mas o preâmbulo para o conceito de oscilador autónomo e isócrono que a ciência e a indústria exigiam. Do ponto de vista estético e museológico, os relógios verge/foliot têm hoje um valor patrimonial e uma beleza de engenharia primitiva; do ponto de vista da relojoaria prática, a espiral é o ponto de viragem inquestionável.
8. Conclusão
A história do oscilador nos relógios mostra um percurso claro: partir de um regulador inercial comandado pelo escape (foliot/verge), para um regulador massa-mola autónomo (roda de balanço + espiral). A espiral de balanço (c. 1675) foi a inovação que permitiu transformar relógios portáteis em instrumentos realmente úteis e fiáveis. A transição exigiu também melhorias nos escapes e na manufactura das molas e rodas, abrindo caminho para a relojoaria moderna.
9. Alguns exemplares de prestígio com osciladores de foliot (antes de 1675)







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