Por: Silvio Pereira
Na nona e penúltima parte deste extenso artigo sobre a história da relojoaria no século XVIII, conhecido como o século dos Grandes Relojoeiros, apresentamos a primeira de duas secções dedicadas quase exclusivamente àquele que é amplamente reconhecido como o mestre dos mestres: Abraham-Louis Breguet. Embora se tenha inspirado noutros relojoeiros da sua época, como Lepine e Arnold, entre outros, Breguet teve o talento de aperfeiçoar as suas ideias e de lhes imprimir um carácter único, transformando-as em criações quase exclusivamente suas. Exemplos notáveis incluem a "espiral Breguet", o turbilhão, os "ponteiros e numerais Breguet", e o "sistema de corda automática", entre outros. Concluímos esta parte do artigo com uma introdução à complexa análise dos "relógios de subscrição", que, embora não tenham sido uma invenção de Breguet, foram por ele magistralmente desenvolvidos e explorados.
Boas leituras!
Revolução Francesa 1789 – 1799:
Inspirada por ideias liberais e radicais, a Revolução Francesa transformou profundamente o curso da história moderna, precipitando o declínio global de teocracias e monarquias absolutas, e pavimentando o caminho para o surgimento de repúblicas e democracias.
Amplamente considerada pelos historiadores como um dos eventos mais significativos da história da humanidade, a Revolução Francesa continua a ser um objeto de intenso estudo e debate.
As causas da Revolução são intrincadas e multifacetadas. Após a Guerra dos Sete Anos e a Guerra Revolucionária Americana, o governo francês enfrentava uma crise financeira profunda e tentou restaurar a sua estabilidade através de esquemas de impostos impopulares. As pressões por mudanças foram articuladas à luz dos ideais iluministas, culminando na convocação dos “États-Généraux” em maio de 1789.
O primeiro ano da Revolução foi marcado pela ascensão dos membros do Terceiro Estado ao poder e pelo emblemático assalto à Bastilha em julho, um ponto de inflexão crucial que simboliza o fervor revolucionário e o colapso do Antigo Regime.
Um acontecimento central da primeira fase da Revolução Francesa, em agosto de 1789, foi a abolição do feudalismo e dos remanescentes privilégios e regras do “Ancien Régime”. Os anos subsequentes foram caracterizados por intensas lutas políticas entre várias assembleias liberais e os partidários conservadores da monarquia, que procuravam obstinadamente impedir reformas significativas.
A proclamação da República em setembro de 1792, após a decisiva vitória francesa na Batalha de Valmy, marcou um ponto de viragem. O Comité de Salvação Pública, sob o controle de Maximilien de Robespierre, advogado de formação, e os jacobinos, instauraram o Reinado do Terror (1793-1794). Durante este período sombrio , incluindo a execução de Luís XVI em janeiro de 1793 e de Maria Antonieta em outubro, ocorreram eventos de grande repercussão internacional.
Segundo registos de arquivo, pelo menos 16.594 pessoas foram executadas na guilhotina, ou de outras formas, após serem acusadas de atividades contra-revolucionárias. Este período de violência extrema deixou uma marca indelével na história da Revolução, refletindo a turbulência e a radicalização dos ideais revolucionários.
A era moderna desenvolveu-se sob a influência duradoura da Revolução Francesa, com quase todos os movimentos revolucionários subsequentes considerando-a como um precursor essencial. As frases emblemáticas e os símbolos culturais, como “La Marseillaise” e “Liberté, Egalité, Fraternité”, tornaram-se clarins convocatórios para outras grandes transformações na história moderna, incluindo a Revolução Russa, mais de um século depois.
Assolado por acusações de corrupção, o Diretório colapsou num golpe de Estado liderado por Napoleão Bonaparte em 1799, amplamente considerado como o encerramento do período revolucionário. Napoleão, que emergiu como herói da Revolução graças às suas campanhas militares vitoriosas, estabeleceu o “Consulado” e, posteriormente, o “Primeiro Império”, delineando o cenário para uma série de conflitos globais conhecidos como as Guerras Napoleónicas.
A ascensão de Napoleão e a subsequente expansão do seu império marcaram um novo capítulo na história europeia, refletindo a continuidade e a transformação dos ideais revolucionários que haviam sido inicialmente proclamados pela Revolução Francesa.
O calendário republicano (ou revolucionário) francês (calendrier républicain (révolutionnaire) français) foi um sistema de calendário criado e implementado durante a Revolução Francesa, refletindo a transformação radical da sociedade. Este calendário foi utilizado pelo governo francês durante aproximadamente 12 anos, desde o final de 1793 até 1805, e brevemente pela Comuna de Paris em 1871, durante 18 dias.
O sistema revolucionário foi concebido com o propósito de eliminar todas as influências religiosas e monárquicas do calendário, integrando-se numa tentativa mais ampla de introduzir o sistema decimal em França. Esta reforma abrangia não apenas o calendário, mas também a hora decimal do dia, a conversão da moeda e a adoção do sistema métrico. Os anos foram redefinidos, com 1792 sendo designado como o ano I, marcando simbolicamente o início de uma nova era de racionalidade e secularismo.
Esta inovação refletia o espírito da Revolução Francesa, que procurava romper com o passado e estabelecer uma sociedade baseada nos princípios da razão e da igualdade. Embora o calendário republicano tenha sido eventualmente abandonado, permanece um testemunho fascinante das ambições revolucionárias de reestruturar todos os aspetos da vida social e política.
Em 1788, Claude Boniface Collignon propôs uma reconfiguração radical do dia, dividindo-o em 10 horas, ou 1 000 minutos, cada nova hora em 100 minutos, cada novo minuto em 1 000 segundos e cada novo segundo em 1 000 terços (do latim "tertius"). Durante a Revolução Francesa foi oficialmente introduzida uma variante dessa hora decimal. Jean-Charles de Borda apresentou uma proposta para a hora decimal em 5 de novembro de 1792, e a Convenção Nacional emitiu um decreto em 5 de outubro de 1793 para a sua implementação.
Embora relógios e mostradores tenham sido fabricados com a dupla indicação da hora padrão (numerada de 1 a 24) e da hora decimal (numerada de 1 a 10), o sistema decimal de tempo nunca foi amplamente adotado. Foi oficialmente utilizado a partir do início do ano republicano III, em 22 de setembro de 1794, mas o uso obrigatório foi suspenso em 7 de abril de 1795 no calendário gregoriano (18 Germinal do ano III[1]), na mesma legislação que introduziu o sistema métrico original.
Além da hora decimal, os mostradores dos relógios incorporavam símbolos emblemáticos do movimento revolucionário, como a bandeira tricolor, o barrete frígio[2], a balança e lemas como "ça ira" (vai ficar tudo bem). Esses relógios eram mais do que simples dispositivos de medição de tempo; serviam como declarações políticas, expressando apoio ao novo sistema republicano e aos ideais revolucionários.
Jean – François De Belle, Paris, 1793
Este requintado relógio em latão dourado apresenta uma caixa de chapa cheia e um movimento de repetição frontal de 49mm, complementado por um escape de verge e um balanço plano de três braços. A sofisticação continua com uma mola de aço espiral e um mostrador regulador prateado, destacando-se pela precisão. O galo pequeno é meticulosamente decorado com padrões geométricos, enquanto o suporte superior do galo de aço confere robustez e distinção ao conjunto.
Detalhes adicionais como a orla da placa frontal, adornada com figuras geométricas reminiscentes de pilares clássicos, acrescentam um toque de elegância refinada. A placa traseira é elegantemente gravada com a inscrição "De Belle Paris", testemunhando a origem e a qualidade artesanal do relógio. O mostrador em cobre esmaltado branco, com algarismos arábicos marcantes, é assinado "De Belle À Paris" e fixado com precisão por um parafuso na posição das 12 horas.
Apesar da harmonia estética exibida, os ponteiros estilo Lépine, embora elegantes, podem ser considerados como uma escolha que destoa ligeiramente do conjunto geral, ressaltando uma leve contraposição na integração estilística do relógio.
Jean-François De Belle estabeleceu-se na Rue Saint-Honoré, no coração de Paris, onde rapidamente conquistou renome que o colocou entre os proeminentes da sua época, sendo frequentemente mencionado nos almanaques contemporâneos. Durante os tumultos da Revolução Francesa, a sua ilustre reputação garantiu-lhe um assento no júri encarregado de avaliar a complexa adaptação mecânica dos relógios para o novo sistema decimal, inaugurado em 24 de novembro de 1793.
O júri, composto por notáveis como Jean-Baptiste Lepaute na presidência, Ferdinand Berthoud, Antide Javier, Jean-Antoine Lépine, Claude Mathieu, além do eminente médico Jacques-Alexandre Charles e do reputado matemático e astrónomo Joseph-Louis Lagrange, após meticulosa deliberação, rejeitou todas as propostas em 4 de dezembro de 1795. As dificuldades técnicas em adaptar os intricados mecanismos dos relógios ao novo sistema decimal e os desafios comerciais associados ao uso de horários siderais noutras nações culminaram no encerramento do projeto da hora decimal em 7 de abril de 1795.
Este episódio não apenas ilustra os desafios técnicos e intelectuais enfrentados durante aquele período de transformação radical, mas também ressalta a influência duradoura da Revolução Francesa na evolução dos padrões temporais e tecnológicos da época.
Jean – Pierre Gregson, Londres/Paris, nº 5003, 1793
Relógio com caixa consular em ouro rosa e latão dourado, apresenta um sistema de corda frontal e um movimento de fusée de placa completa com um diâmetro de caixa de 38,5 mm. Pilares de balaústre redondos sustentam um galo de balanço de dois pés em estilo francês, habilmente gravado, sendo que a pedra de rubi de estilo inglês substituiu o suporte superior do galo original de aço francês. A placa traseira ostenta a distinta inscrição “Gregson A Paris No. 5003”.
Originalmente equipado com um escape de verge, este relógio foi posteriormente adaptado para um escape de âncora inglês. O balanço é meticulosamente trabalhado em aço polido. O mostrador, em latão esmaltado, destaca-se com algarismos árabes vermelhos para as horas e algarismos árabes pretos para os minutos, seguindo a tradição da oficina Lépine. O escaravelho de ouro e os ponteiros de póquer, de estilo posterior, complementam a estética refinada desta peça.
As bordas da caixa são ricamente decoradas em ouro, enquanto o fundo é adornado com aplicações de frutas e folhas em três tons de ouro, conferindo-lhe um apelo visual distintamente elegante.
Construído e posteriormente modificado em Londres, este relógio incorpora elementos de design francês e inglês de forma harmoniosa. A precisão da engenharia inglesa, evidente no escape de âncora destacado, adiciona uma camada de sofisticação à sua execução francesa original. Este exemplar exemplifica a fusão perfeita entre a tradição relojoeira europeia e a procura constante pela excelência técnica e estética.
Jean-Pierre Gregson, natural de Londres, alcançou o reconhecimento como relojoeiro do rei em Paris em 1776, estabelecendo residência na prestigiada Rue Dauphine. Sob o título honorífico de “Gregson Horloger du Roy à Paris”, foi profundamente influenciado pelo renomado trabalho de Lépine, destacando-se como um dos pioneiros a adotar o calibre Lépine nas suas criações.
Em 1787, fundou uma conceituada manufatura de relógios em Braille, evidenciando um interesse singular por escapes complexos e designs inovadores. Gregson empregava frequentemente escapes de cilindro ou âncora nos seus elegantes relógios de bolso, sendo os sistemas de "dentes de lobo"[3] uma característica distintiva em muitas das suas obras.
Entre os seus projetos notáveis estão os relógios esmaltados em ouro com escape de âncora, além dos modelos com roda de balanço visível e segundos centrais, que demonstram a habilidade técnica e estética refinada. Gregson também era conhecido pelas criações de relógios de bolso com escape de cronómetro, refletindo um compromisso constante com a precisão e a inovação.
Jean-Pierre Gregson deixou um legado duradouro na relojoaria da sua época, unindo mestria técnica com uma abordagem vanguardista no design dos seus sofisticados relógios de bolso.
Em 1790, após os primeiros anos tumultuosos da Revolução Francesa, Jean-Pierre Gregson retornou à sua cidade natal, Londres, deixando de lado o título "Horloger du Roy" nas suas assinaturas. Optou, em vez disso, por assinar ocasionalmente como "Horloger à Paris". Na vibrante atmosfera londrina, estabeleceu uma nova oficina sob o simples nome de "Gregson London", onde continuou a cultivar a sua reputação na produção de relógios no refinado estilo francês.
Gregson manteve intacto o sistema de numeração francês nas suas obras, além da assinatura intermediária "Gregson à Paris", que testemunhava a ligação contínua com a capital da moda e do design. Durante o período entre 1800 e 1815, colaborou temporariamente com um distinto colega de profissão chamado Jefferson, resultando na parceria marcada pela elegante assinatura conjunta "Gregson & Jefferson, Londres".
Abraham – Louis Breguet 10.01.1747 – 17.09.1823
Breguet nasceu em Neuchâtel, Suíça, filho de Jonas-Louis Breguet e Suzanne-Marguerite Bollein. Desde cedo, surpreendeu o seu mestre com a sua aptidão e inteligência. Para prosseguir com os estudos, frequentou aulas noturnas de matemática no prestigiado Collège Mazarin, em Paris, sob a tutela do abade Marie, que se tornou amigo e mentor deste jovem relojoeiro.
Em 1775, após concluir os estudos, Breguet obteve permissão para casar. Em conjunto com a noiva, Cécile Marie-Louise L'Huillier, estabeleceram a residência e a relojoaria Breguet no então prestigiado endereço “51 Quai de l'Horloge”, na Île de la Cité, em Paris. Infelizmente, esse número de porta já não existe, tendo sido alterado ao longo do tempo com a renumeração das ruas.
À medida que a reputação de Breguet crescia, tornou-se amigo do líder revolucionário Jean-Paul Marat, que também era natural de Neuchâtel.
Breguet inventou e aperfeiçoou vários mecanismos inovadores, incluindo o desenvolvimento final do turbilhão, o overcoil (uma melhoria na mola de balanço com uma extremidade elevada, originalmente inventada por John Arnold), e refinou os mecanismos automáticos de corda. Em menos de uma década, Breguet conquistou a admiração das famílias aristocráticas de França, incluindo a rainha Maria Antonieta.
Tragicamente, a sua esposa faleceu em 1780.
Breguet conheceu Abraham-Louis Perrelet, creditado por alguns como o inventor inicial do mecanismo automático de corda, embora a atribuição moderna seja frequentemente associada ao belga Hubert Sarton, que apresentou um desenho à Académie Royale des Sciences em Paris, em 16 de dezembro de 1778. Breguet, posteriormente, melhorou esse mecanismo e deu-lhe o nome de "perpetuelle".
Em 1784, Breguet alcançou o estatuto de Mestre Relojoeiro. Estabeleceu uma parceria, breve, de 1787 a 1791, com Xavier Gide e o seu irmão. Em 1792, o Duque de Orléans visitou a Inglaterra, onde conheceu John Arnold, então o principal relojoeiro da Europa. Mostrou a Arnold um relógio feito por Breguet, deixando-o profundamente impressionado.
Arnold viajou imediatamente para Paris e solicitou a Breguet que aceitasse o seu filho como aprendiz. Esse encontro marcou não apenas o reconhecimento de Breguet como mestre na sua arte, mas também a união de ideias e inovações entre dois dos maiores nomes da relojoaria da época.
Jacques – Louis David, ‘The death of Marat’, 1793, Royal Museums of Fine Art of Belgium, Brussels
Em 1793, Jean-Paul Marat descobriu que Breguet foi condenado à guilhotina, possivelmente devido à sua amizade com o abade Marie ou à sua associação com a corte real. Em retribuição por ter sido anteriormente salvo por Breguet, Marat providenciou um salvo-conduto, permitindo que Breguet fugisse para a Suíça em 12 de agosto de 1793, de onde posteriormente viajou para Inglaterra. Nesse mesmo ano, em 13 de julho de 1793, Marat foi apunhalado na sua própria casa, na banheira, por Charlotte Corday, de Caen. Antes de morrer, gritou para a sua esposa: "Aidez-moi, ma chère amie!" ("Ajuda-me, minha querida amiga!").
A viagem de Breguet para a Suíça incluiu uma breve visita a Ferney e Genebra, bem como uma estadia prolongada na região de Neuchâtel e Le Locle. Posteriormente, permaneceu algum tempo em Londres, onde prestou serviços para o Rei Jorge III.
Modelos de latão para a disposição dos diferentes tipos de movimentos utilizados na oficina de Breguet. Extraído de Antiquorum, Genebra, Hotel Des Bergues, 12 de Outubro de 1996, Lote: 317
Em 20 de abril de 1795, Breguet retornou a Paris, aproveitando a estabilização da cena política em França. Trouxe consigo uma série de ideias inovadoras, melhorando, por exemplo, o conceito do “Montre à Souscription”. Por volta de 1807, Breguet associou o seu filho, Louis-Antoine (nascido em 1776), aos negócios, e a empresa passou a ser conhecida como “Breguet et Fils”. Breguet havia enviado o filho a Londres para estudar com o prestigiado fabricante de cronómetros, John Arnold. A amizade e o respeito mútuo entre os dois mestres relojoeiros eram tão grandes que Arnold retribuiu a cortesia enviando o filho, John Roger, para estudar com Breguet.
Breguet produziu três séries de relógios, com a mais alta numeração atingindo 5120. Estima-se, portanto, que a empresa tenha fabricado aproximadamente 17 000 peças durante a vida de Breguet. Dada essa vasta produção, é compreensível que nem todas as peças fossem inteiramente manufaturadas ou finalizadas internamente. Muitos dos relógios mais simples, bem como alguns dos mais complexos, eram adquiridos já prontos, refletindo a procura e a complexidade da produção relojoeira da época.
IWM, La Chaux-de-Fonds. Caixa típica de relógio Breguet de cerca de 1790 – 1840.
Devido à meticulosa atenção aos detalhes e à incessante procura por inovação, cada peça de Breguet é singular e única no design. As suas obras rapidamente capturaram a atenção de uma clientela abastada e influente, incluindo figuras como Luís XVI e a rainha Maria Antonieta, Luís XVIII, Jorge IV do Reino Unido, Napoleão Bonaparte, Alexandre I da Rússia, o Príncipe de Gales, Josefina de Beauharnais e o 1.º Duque de Wellington.
Após ser introduzido na corte e a sua arte ser amplamente reconhecida, a rainha Maria Antonieta demonstrou um imenso fascínio pelo notável relógio automático de Breguet, influenciando Luís XVI de França a adquirir várias peças.
No início da sua carreira, Abraham-Louis Breguet utilizava predominantemente os excelentes calibres de Jean-Antoine Lépine, os quais transformava com maestria. Posteriormente, desenvolveu os próprios calibres, elevando ainda mais o prestígio das suas criações. Relógios e cronómetros são amplamente reconhecidos como alguns dos mais belos e tecnicamente avançados da época.
O negócio prosperou continuamente, e após o falecimento de Abraham-Louis Breguet em 1823, o seu filho, Louis-Antoine, assumiu a responsabilidade de dar continuidade ao legado familiar, mantendo a reputação de excelência e inovação na arte da relojoaria.
Sistemas de numeração de Breguet, modificados e complementados a partir de A. Chapiro
A partir de 1775, quando iniciou sua carreira independente, Breguet predominantemente utilizava movimentos e relógios pré-fabricados fornecidos pela oficina de Lépine ou pela fábrica de Gedeon Decombaz em Genebra, prestigiado fabricante de movimentos brutos. Estes movimentos, frequentemente associados aos de Lépine, eram cuidadosamente ajustados e gravados com a marca "Breguet à Paris", frequentemente sem numeração.
Após alcançar o status de mestre relojoeiro em 1784 e conquistar uma clientela cada vez mais distinta, Breguet implementou um sistema de numeração para registar detalhes específicos de fabrico e datas de venda dos relógios.
Alguns dos primeiros relógios, sem numeração e fabricados antes de 1784, foram mantidos em diferentes estágios de acabamento. Posteriormente, foram finalizados e comercializados após 1790, recebendo números de produção correspondentes. Exemplos dessas peças antigas, porém posteriormente numeradas, incluem os números 12, 149, 149bis e 242. Essa abordagem não apenas organiza o texto de maneira clara, mas também utiliza uma linguagem sofisticada para transmitir informações precisas e elegantes.
Thomas Tompion estabeleceu inicialmente um sistema de numeração que foi continuado por George Graham em Inglaterra. Em França, Julien LeRoy foi pioneiro ao adotar um sistema de numeração contínua, seguido por Ferdinand Berthoud e Lépine. Breguet, por sua vez, introduziu diversos sistemas de numeração, o que complica consideravelmente a atribuição e a datação dos seus relógios. Isso deve-se ao fato de que alguns números foram reutilizados ou não foram atribuídos a nenhum relógio específico, além da sobreposição de sequências entre diferentes tipos de relógios, como os modelos souscription.
Uma tabela detalha os diferentes sistemas de numeração e as datas aproximadas de uso ao longo da produção de Breguet. Não existe registos se Breguet utilizou um sistema diferente durante seu período na Suíça (de agosto de 1793 a abril de 1795). Além disso, o sistema de numeração para os relógios produzidos fora das oficinas da Breguet (Etablissement Mixte de Breguet) não está incluído na tabela. Este último sistema de numeração, que foi utilizado paralelamente à terceira série, esteve ativo de 1806 (número 1) a 1832 (número 2421).
Esta complexidade na numeração reflete a meticulosa evolução e expansão do legado de Breguet ao longo do tempo, capturando a intrincada história por trás das suas criações excecionais.
É crucial notar que não existem registos de qualquer relógio Breguet com um número de produção superior a 6000. Portanto, qualquer relógio ostentando a assinatura "Breguet" e numerado acima de 5500 deve ser considerado uma falsificação. Especialmente durante o século XIX, falsificações frequentemente fabricadas na Suíça e assinadas como "Breguet à Paris" utilizam números de série acima de 5500.
A seguir, são apresentados alguns exemplares que ilustram a evolução dos desenvolvimentos da Breguet.
Esta versão mantém a clareza da informação enquanto utiliza uma linguagem mais refinada e precisa para transmitir o alerta sobre falsificações e introduzir os exemplos representativos dos relógios Breguet.
Abraham – Louis Breguet, Paris, 1785
Calibre em latão para um movimento de repetição de um quarto de placa completa (diâmetro de 47,5 mm), com posições de rodas gravadas bilateralmente e furos de pinhão perfurados (frente à esquerda, traseira à direita do movimento). Cada roda tem o número de dentes estampado. Sistema de repetição de quartos à toc, com escape de cilíndro em aço com 14 dentes.
Embora muitos dos primeiros movimentos de Breguet tenham sido adaptados de movimentos brutos comerciais (ébauches), a existência deste calibre indica que Breguet também desenvolveu os próprios ébauches internamente. Isso proporcionou máxima liberdade na conceção e otimização dos movimentos, contribuindo significativamente para os impressionantes desenvolvimentos de Breguet.
Ref.: Daniels G., The Art of Breguet, Sotheby Parke Bernet, Londres, 1974, P.142, Pic. 73 ad, nº 233 3/88, 1ª série, 1788.
Abraham – Louis Breguet, Paris, nº 165, 1790
A caixa deste relógio é meticulosamente construída em ouro e latão dourado, apresentando um movimento de placa completa de sistema de corda frontal com um generoso diâmetro de 49 mm. O balanço, elaborado em latão e equipado com três braços, é complementado por um escape de quatro cilindros de aço, seguindo o refinado padrão inglês.
Um aspeto distintivo deste exemplar é a fixação da placa traseira aos pilares redondos, uma característica comum em cronómetros marítimos e relógios de bolso de alta qualidade. O galo está adornado com uma safira, enquanto a roda de escape é armada separadamente, não sendo fixada entre as placas. Este galo interno, conhecido como "potência", está coberto por uma robusta estrutura de aço.
A placa traseira é uma obra de arte em si mesma, finamente gravada com a inscrição "Breguet A PARIS" seguida do número 165, pertencente à segunda série de produção. A adição "A PARIS" é característica dos relógios Breguet fabricados até 1795, adicionando um toque de autenticidade e história a esta peça excecional.
O mostrador é uma obra-prima de arte e engenharia, feito de cobre esmaltado e com proteção do orifício do sistema de corda em aço. Os algarismos arábicos "Breguet" conferem-lhe uma elegância atemporal, enquanto os índices são marcados com símbolos distintivos: "Fleur de Lys" para os cinco minutos e estrelas para os minutos, padrões exclusivos que remontam aos mostradores Breguet até 1793.
Este mostrador não apenas exibe uma funcionalidade excecional, mas também é uma obra de arte assinada com a caligrafia antiga "Breguet", um estilo raramente utilizado após 1795, o que confere uma autenticidade singular à assinatura de Breguet.
Os ponteiros são do tipo plano "Breguet", habilmente fabricados em aço azulado do primeiro tipo, destacando-se tanto pela sua precisão quanto pelo seu design estético.
Duas variantes deste raro estilo de assinatura são observáveis nos mostradores, diferenciadas pela forma peculiar do caractere “r”. O relógio número 165 exibe a mesma versão de assinatura encontrada nos números 17 e 148, todos pertencentes à 2ª série. O estilo inicial de numeração com frações foi gradualmente abandonado por volta de 1788; o número 112, que exibe um estilo de numeração similar ao do número 165, data de 1789. Este tipo de movimento parece derivar de movimentos comerciais de "qualidade inferior" utilizados durante a colaboração de Breguet com Xavier Gide. É um dos aproximadamente cinco exemplares sobreviventes desse tipo, sendo o mais antigo e o único conhecido como "montre simple", desprovido de complicações.
O acabamento deste movimento supera significativamente todos os outros movimentos simples de estilo francês deste período, encontrados até hoje. A sofisticação e precisão coincidem com as descrições fornecidas por Xavier Gide sobre o trabalho de Breguet. Gide considerava o ritmo de trabalho de Breguet excessivamente lento, pois Breguet dedicava uma atenção meticulosa a detalhes que Gide julgava supérfluos, preferindo, assim, a produção em maior escala com uma qualidade ligeiramente inferior. Esta diferença fundamental na ética e filosofia de trabalho acabou por levar ao término prematuro da sua colaboração em 1791.
Existem numerosas evidências que indicam que Breguet empregou escapes de cilindro ingleses em aço em algumas das suas primeiras criações, como exemplificado pelo nº 128 5/85, produzido em 1785. Durante as frequentes visitas a Londres em 1790 e 1791, Breguet procurou concluir vendas de grande importância e aproveitou a oportunidade para incrustar vários dos seus relógios com jóias, como safiras. É plausível que este movimento seja uma dessas peças levadas para Inglaterra para serem adornadas. Naquela época, a arte da joalheria não era altamente desenvolvida entre os relojoeiros franceses, sendo as melhores joias fornecidas por especialistas ingleses. Posteriormente, Breguet aperfeiçoou o escape de cilindro[4], incorporando paletas trapezoidais, para adaptá-lo à sua versão do sistema de cilindros de rubi.
Influência inglesa:
No relógio nº 165, o estilo inglês do galo, o uso de um escape de cilindro em aço de tipo inglês e a placa traseira aparafusada refletem o estreito intercâmbio entre Abraham-Louis Breguet e os relojoeiros ingleses, como John Arnold de Londres. Muitos dos primeiros relógios produzidos na oficina de Breguet evidenciam a profunda influência da relojoaria inglesa. Breguet visitou Londres repetidamente, iniciando em 1785 e novamente em 1790 e 1791. Forçado a deixar a França em 1793, trabalhou em Londres por um período após a sua estadia na Suíça, onde foi acolhido por Jacques-Frédéric Houriet em Le Locle.
John Roger Arnold, filho de John Arnold, foi aprendiz de Breguet entre 1792 e 1794. Da mesma forma, Louis-Antoine Breguet, filho de Abraham-Louis Breguet, foi aprendiz de John Arnold. Esta troca de conhecimentos e técnicas entre Breguet e os relojoeiros ingleses resultou numa fusão de estilos e avanços técnicos, refletindo-se claramente nos detalhes e na qualidade dos relógios produzidos por Breguet durante este período.
Influência Mútua entre Breguet e Relojoeiros Ingleses:
Breguet, e até certo ponto Lépine antes dele, adotou e melhorou várias inovações dos relojoeiros ingleses. Entre as influências mais notáveis estão:
Grandes cronómetros: John Harrison, John Arnold, Thomas Earnshaw e outros.
Escape de cilindro: George Graham.
Escape de âncora: Thomas Mudge.
Compensação de temperatura para molas helicoidais: John Harrison.
Escape de cilindro de rubi: John Arnold.
Turbilhão: John Arnold.
Compensação de balanço: John Arnold.
Joias: John Arnold e outros.
Sistema de corda de mola de balanço: John Arnold.
Posteriormente, os relojoeiros ingleses também incorporaram características francesas, principalmente de Lépine e Breguet:
Calibre em pontes: Lépine.
Estética e disposição das pontes: Breguet.
Pára-quedas[5]: Breguet.
Mostradores de metal guilhochado: Breguet, adotado de John Arnold.
Ponteiros "Breguet": Lépine/Breguet.
Sistema de repetição em gongos: Breguet.
Essa troca de técnicas e inovações resultou numa fusão enriquecedora entre os estilos relojoeiros franceses e ingleses, evidenciando a colaboração e a influência mútua que caracterizaram o desenvolvimento da relojoaria no final do século XVIII e início do século XIX.
Abraham – Louis Breguet, Paris, nº 203, 1792
Relógio de Latão Dourado com Placa Cheia e Movimento de Repetição de Quartos.
Apresenta um mecanismo de repetição de quarto à toc, equipado com um escape de cilindro em rubi, balanço plano de três braços, mola helicoidal de aço com regulador, e trava de compensação sob o balanço, além de fusée e corrente. Na borda da placa frontal está finamente gravada com “BREGUET A PARIS No. 203” (2ª série), e a placa traseira ostenta a mesma inscrição.
O mostrador é confecionado em cobre esmaltado branco, adornado com a elegante assinatura cursiva "Breguet", usada até 1795. O verso do esmalte está assinado à mão “Cave Place Dauphine”. Os ponteiros são os clássicos ponteiros "Breguet" de aço plano azulado, e a caixa é de ouro, adicionada posteriormente.
Este movimento de repetição tradicional, acionado por corrente e polia, foi aperfeiçoado por Julien Le Roy quase meio século antes. Tais movimentos foram empregados entre 1795 e 1800, representando um estágio de transição entre o tipo pré-1787 (calibre convencional com corda por pingente de bomba, polia e corrente) e o "novo calibre" (produzido de 1790 a 1815, com martelo único à toc, como o No. 726, para horas e frações de hora), que eventualmente os substituiu.
Esta peça é um testemunho do progresso técnico e estético na relojoaria durante o final do século XVIII, exemplificando a transição dos métodos tradicionais para os inovadores desenvolvimentos de Breguet.
Ex colecção particular A. Chapiro (F)
Publicado em: Chapiro A., Taschenuhren aus vier Jahrhunderten, Callwey, Munich, 1995, P: 223 – 225, Fig.: 474, 476, 477, 47
Abraham – Louis Breguet, Paris, nº 234, 1793
Este relógio distingue-se pela caixa consular prateada e em latão dourado, com uma placa completa e um movimento de repetição à toc com sistema de corda frontal, possuindo um diâmetro de 49mm. Equipado com um escape de verge e um balanço plano de três braços, apresenta uma mola de aço espiral com mostrador regulador prateado, além de fusível e corrente. O pequeno galo ostenta uma decoração geométrica e um galo de aço. Na borda da placa frontal, está gravado "BREGUET A PARIS No. 234" (2ª série), uma inscrição replicada no aro da placa traseira.
O mostrador em cobre esmaltado branco exibe a antiga assinatura cursiva "Breguet" em ouro, usada até 1795. Este mostrador está fixado por um parafuso e um pino no aro. Os algarismos árabes dourados indicam as horas, com marcações dos minutos e números de data pretos dispostos em sentido anti-horário. Com um toque distintivo, cada segundo número de data é substituído por uma estrela. O esmalte no verso está assinado à mão "(P) Dauphine 1793", juntamente com o número do movimento "234". A Place Dauphine era conhecida como o local onde os esmaltadores, frequentemente empregados por Breguet e outros relojoeiros da Île de la Cité, realizavam o trabalho de esmalte nos mostradores. A maioria dos mostradores não possui inscrições no esmalte do verso. Os ponteiros de aço azulados foram restaurados, preservando a elegância original do design.
O relógio utiliza um mecanismo de repetição convencional, enrolado por corrente e polia, um sistema aperfeiçoado por Julien Le Roy quase meio século antes. Este tipo de movimento foi amplamente utilizado antes de 1795 e representa uma ligeira modificação a partir de movimentos de repetição comerciais. Exemplifica a fase mais antiga de desenvolvimento, ainda utilizando o calibre anterior a 1787, com corda por pingente de bomba, polia e corrente. Esta fase evoluiu para um calibre intermediário, como o observado no relógio nº 203, e posteriormente para o "nouveau calibre", como no exemplar nº 726, produzido entre 1790 e 1815. Este último calibre introduziu um único martelo à toc para marcar as horas e frações de hora, substituindo as versões anteriores mais complexas.
Este movimento de repetição inicial provavelmente provém do acervo comercial fornecido por Xavier Gide. Semelhante a outros exemplares baseados em peças comerciais convencionais, como o nº 165, o acabamento deste movimento distingue-se pela qualidade extraordinária em comparação com peças contemporâneas confecionadas noutras oficinas. Este movimento é maior, mas do mesmo tipo do movimento de repetição utilizado no nº 179, vendido a Maria Antonieta em 1792. Além disso, o nº 234 foi construído apenas alguns meses antes de Breguet ter de fugir de Paris em 12 de agosto de 1793, rumo à Suíça.
O uso de números e assinatura em ouro no mostrador também foi uma característica destacada em mostradores de outros fabricantes. Este estilo foi inicialmente introduzido por Jean-Antoine Lépine. Há apenas um outro relógio conhecido deste estilo de Breguet, utilizando números e assinatura em ouro no mostrador esmaltado (nº 231, vendido na Antiquorum Genebra, em 14 de abril de 1991, lote 4, catálogo P.: 24, 25). Este último relógio, cuja construção é quase idêntica ao movimento apresentado acima, ajuda ainda mais a datar o nº 234, pois foi registado nos livros de Breguet em 2 de janeiro de 1793.
Outra peça semelhante, apresentada no livro de A. Chapiro “Taschenuhren aus vier Jahrhunderten” (P.: 219, 220, Pic.: 464, 465), provou ser uma falsificação contemporânea.
Um relógio diferente e posterior, com repetição de um quarto, nº 1899, também apresenta algarismos arábicos dourados, índices e a assinatura “BREGUET ET FILS”, vendido em 1806 ao Duque de Newcastle.
A complicação da data de Breguet:
A aplicação anti-horária dos números de data é uma marca distintiva das primeiras criações de Breguet, evidenciando a sua habilidade única em combinar funcionalidade com inovação estética. Neste exemplar específico, o movimento é equipado com uma data concêntrica e um mecanismo de corda frontal, onde o ponteiro da data repousa na marca “0”, permitindo ao proprietário movê-lo manualmente para “1”. Para garantir que o proprietário não se esquecesse de ajustar a data, a marca “0” foi astutamente posicionada na projeção do orifício da corda. Assim, ao dar corda ao relógio, um ritual diário para a maioria dos proprietários, o ponteiro da data precisava de ser movido para fora do caminho do orifício de corda, ajustando-se automaticamente para a posição “1”.
Este sistema, simultaneamente simples e engenhoso, exemplifica a combinação de praticidade e inovação que caracteriza as invenções de Breguet. A atenção meticulosa aos detalhes e a procura incessante pela perfeição técnica permitiram que Breguet criasse mecanismos que não apenas melhoravam a funcionalidade do relógio, mas também elevavam a experiência do usuário a um novo patamar de conveniência e precisão.
Abraham – Louis Breguet, Paris, 1795
Esta peça de teste em latão, em duas partes e com um diâmetro de 35,5 mm, representa um submostrador de fase da lua destinado a um relógio de viagem de oito dias, como os modelos nº 178 ou 179. O índice é meticulosamente dividido em 15 setores, cada um subdividido em terços, uma configuração refinada que posteriormente evoluiu para 6 setores subdivididos em quartos na versão final. Cada setor e subsetor é distinguido por formas redondas perfuradas, preenchidas com tinta preta, adicionando um toque de elegância e funcionalidade ao mostrador. O disco giratório exibe dois círculos que representam a lua, cada um acompanhado por uma seta no topo para indicar o índice, proporcionando uma representação visual clara das fases lunares no contexto do relógio de viagem.
Ref.: Daniels G., The Art of Breguet, Sotheby Parke Bernet, Londres, 1974, P.164, Pic. 115 ad, nº 179, 3ª série, vendido em 1804
Relógio de Assinatura
Versão de Houriet do relógio 'souscription', 1777. Tirada e modificada a partir de: Sabrier JC, Frédéric Houriet, Editions Simonin, 2006. Interpretação dos desenhos de Houriet por Georges Rigot. Desenhos reconstrutivos de Bernard Müller.
O protótipo do relógio “souscription” foi concebido em 1777 pelo relojoeiro suíço Jacques-Frédéric Houriet. Nos seus manuscritos, Houriet detalhou o desenvolvimento e a construção deste relógio, delineando todos os fundamentos que Abraham-Louis Breguet viria a melhorar posteriormente. O relógio de ponteiro único, construído com o mínimo possível de peças, era bastante volumoso. Após vender aproximadamente 100 unidades num mercado em Zurzach, Suíça, Houriet não prosseguiu com o aperfeiçoamento do projeto.
Houriet provavelmente compartilhou a sua ideia com Abraham-Louis Breguet, que era um visitante regular de Houriet em Le Locle. Breguet iniciou o desenvolvimento e refinamento do relógio “souscription” por volta de 1791. As primeiras versões experimentais ainda refletiam muito do design original de Houriet. Durante o exílio na Suíça, por volta de 1794, Breguet continuou a desenvolver o relógio “souscription”, provavelmente com a colaboração do seu amigo e anfitrião, Houriet. Após retornar a Paris em 1795, Breguet retomou a construção desses relógios.
Os relógios “souscription” foram projetados para conter o mínimo de componentes possível, visando torná-los acessíveis a uma clientela menos abastada. O modelo de pagamento consistia em duas parcelas, com 25% do valor pago no pedido e o restante no recebimento do relógio. No entanto, o custo final dos relógios variava entre 550 e 900 francos, o equivalente a um ano de salário de um trabalhador na época, o que os tornava, paradoxalmente, inacessíveis para o público menos privilegiado.
O Mostrador
Os mostradores dos relógios “souscription” apresentam uma sofisticação única e uma variedade de materiais e estilos ao longo dos anos:
Materiais e Design Inicial: Normalmente confecionados em cobre esmaltado, esses mostradores exibem algarismos arábicos e intervalos de cinco minutos, permitindo a leitura precisa do tempo com uma resolução de um minuto. Em algumas versões menores, o mostrador é de prata guilhochada ou ouro, e ao longo do século XIX, muitos mostradores esmaltados foram substituídos por versões guilhochadas, que utilizam sempre algarismos romanos.
Métodos de Fixação: As primeiras versões dos mostradores eram fixadas por parafusos ou pinos na parte traseira do relógio. Nas versões posteriores, essa fixação foi simplificada para um único parafuso localizado próximo das 12 ou das 6 horas, refletindo uma evolução no design e na funcionalidade.
Posicionamento e Estilo da Assinatura: O posicionamento e o estilo da assinatura variaram ao longo do tempo. Nas versões anteriores, a assinatura era colocada abaixo do número 12 ou acima do número 6, utilizando um estilo cursivo ou letras romanas maiúsculas. Nas versões posteriores, a assinatura foi deslocada para a borda do mostrador. A partir de 1796, para combater falsificações, foi introduzida uma assinatura secreta abaixo do número 12 em quase todos os mostradores esmaltados. Esta assinatura secreta, “Souscription, No 267 Breguet”, era feita com um pantógrafo, proporcionando uma camada adicional de autenticidade e segurança.
O detalhe meticuloso e a evolução constante no design dos mostradores dos relógios “souscription” refletem a dedicação de Breguet à precisão, à estética e à inovação, características que definem a sua obra-prima relojoeira.
O Ponteiro
Uma das características mais distintivas deste relógio é a presença de um único ponteiro, que indica tanto as horas como os minutos, eliminando a necessidade de um ponteiro de minutos separado. Este ponteiro é fabricado em aço azulado, um material tradicionalmente valorizado na relojoaria pela sua durabilidade e resistência à corrosão.
O design do ponteiro segue o estilo clássico “Breguet”, conhecido pela elegância e funcionalidade. A extremidade do ponteiro é excecionalmente longa, facilitando a leitura precisa do tempo. Em muitas versões, a ponta possui uma pequena "saliência" de formato variável, um detalhe que não está presente nos modelos mais antigos nem nas substituições tardias.
Existem algumas raras exceções em que o ponteiro é reto e não segue o estilo tradicional “Breguet”. Estes ponteiros retos são encontrados exclusivamente em relógios de menor tamanho, conferindo-lhes uma aparência única e diferenciada.
Esta simplificação, ao usar apenas um ponteiro, não só reduz a complexidade do movimento interno do relógio, mas também reflete a filosofia de Breguet de combinar funcionalidade e estética com inovação técnica.
A caixa
Primeiras Versões Experimentais
As primeiras versões experimentais dos relógios “souscription” possuíam uma caixa de prata ou ouro, sem guarda pó, com uma haste de pistão típica do final do século XVIII e um arco oval. A haste de pistão, utilizada para ajustar as horas e dar corda ao movimento, era projetada para ser robusta e prática, refletindo o design funcional e estético da época.
Exemplares Intermediários
Os exemplares intermediários mantinham a mesma forma básica, porém introduziam uma borda frontal e traseira dourada, associada a uma caixa prateada e ainda sem guarda pó. Nessa fase, a haste evoluiu para uma bola curta perfurada por um arco circular, acrescentando um toque de sofisticação ao design.
Versões Posteriores
Nas versões posteriores, a caixa predominantemente dourada tornou-se padrão, mantendo a ausência do guarda pó. A haste em forma de bola com arco circular também se consolidou como um elemento característico desses modelos. O verso das caixas podia ser liso ou guilhochado, um acabamento decorativo que adicionava um nível extra de elegância e complexidade estética.
Modificações do Século XIX
Durante o século XIX, muitas caixas de relógios “souscription” foram substituídas. Provavelmente, as caixas originais foram removidas devido ao desgaste ou por estarem fora de moda, sendo substituídas por versões de prata, mais robustas e resistentes ao tempo. Essas substituições, embora alterem a originalidade dos exemplares, mantêm a essência e a funcionalidade dos relógios, preservando a herança relojoeira de Breguet.
Este cuidadoso desenvolvimento e evolução das caixas dos relógios “souscription” exemplificam a contínua inovação e adaptação às preferências estéticas e funcionais da época, refletindo a habilidade incomparável de Breguet em combinar tradição e modernidade na relojoaria.
O Movimento do Relógio Souscription
Os relógios “souscription” são predominantemente de grande porte, com movimentos que medem 56,5 mm de diâmetro, enquanto o diâmetro total dos relógios é de 62,2 mm. No entanto, também existem alguns tipos intermediários e menores. O design dos relógios “souscription” é particularmente adequado para demonstrar o desenvolvimento técnico e estético dos relógios de Breguet.
Variedades de Movimentos Souscription:
Existem cinco tipos diferentes de movimentos de relógios “souscription”. Abaixo está um resumo do desenvolvimento desses movimentos, excluindo um protótipo (nº 15, terceira série), que possui um aspeto mais “primitivo” e não está ilustrado. Basicamente, os movimentos podem ser categorizados em duas fases experimentais e duas fases intermediárias, culminando na versão final
Primeiros Tipos Experimentais:
Esses movimentos representam os primeiros esforços de Breguet para criar um relógio simplificado e eficiente. Incorporam elementos básicos e são caracterizados pela tentativa de minimizar o número de componentes.
Movimentos Intermediários
Primeira Fase Intermediária:
Nesta fase, Breguet começa a refinar o design, introduzindo melhorias tanto na precisão como na durabilidade do movimento.
Segunda Fase Intermediária:
Os movimentos desta fase são mais sofisticados, mostrando avanços significativos em termos de técnica e estética. A engenharia começa a aproximar-se da qualidade que será vista na versão final.
Desenhos de vistas posteriores dos tipos de movimento de assinatura existentes. O desenvolvimento é da esquerda para a direita. A placa traseira ou pontes são amarelas, o equilíbrio é azul.
No próximo artigo iremos continuar com a histório dos "relógios de subscrição" de Breguet.
George Brown
Edward Brown, nascido em Clerkenwell, na Inglaterra, desempenhou o papel de capataz na oficina da Breguet até 1870, quando ascendeu à posição de líder na firma Breguet, da qual se havia tornado sócio.
Sob a sua liderança, a prestigiada casa relojoeira passou a ser conhecida como Maison Breguet em 1881, mantendo um padrão inabalável de produção de alta qualidade. Edward Brown, um visionário no campo da relojoaria, faleceu em 1895 aos 66 anos de idade, deixando um legado de excelência e inovação.
Após sua partida, a empresa foi sucessivamente administrada pelos seus filhos, Edward e Henry. Edward aposentou-se no início do século XX, passando a responsabilidade principal para Henry, que demonstrou notáveis habilidades na gestão do negócio.
Em 1927, George Brown, filho de Henry, sucedeu ao seu pai, mostrando-se não apenas um líder competente, mas também um guardião do legado de excelência da família na arte da relojoaria.
George Brown desenvolveu uma amizade com George Daniels, cujo encontro remonta ao início dos anos 1960. Daniels era um especialista em relógios Breguet e agente da marca em Londres. Brown enfrentava desafios para encontrar relojoeiros habilidosos capazes de produzir relógios meticulosamente feitos à mão. Foi então que recorreu a Daniels, que já havia realizado a réplica manual de um relógio Breguet. Impressionado com o trabalho de Daniels, Brown ficou ciente da ambição deste em fabricar os próprios relógios. Contudo, Daniels recusou a oferta de produzir relógios para a Breguet.
A família Brown mudou as instalações da Breguet várias vezes até aproximadamente 1933, quando se estabeleceram na Place Vendôme. Durante este período, adquiriram vários itens notáveis, alguns dos quais estão aqui apresentados.
Muitos desses artefatos foram leiloados pela Patrizzi & Co. e pela Chayette & Cheval.
Os manuscritos escritos por Abraham-Louis Breguet, que George Brown guardava numa caixa de papelão, foram vendidos por 2,1 milhões de dólares na Patrizzi & Co. em Genebra, em maio de 2010.
Atualmente, esses preciosos documentos estão em exibição no Museu Breguet em Paris.
Notas:
[1] "18 Germinal do ano III" refere-se a uma data no calendário republicano francês, que foi introduzido durante a Revolução Francesa para substituir o calendário gregoriano. Este calendário tinha meses e nomes diferentes, além de um sistema de contagem de anos começando a partir do estabelecimento da Primeira República Francesa em 22 de setembro de 1792. "Germinal" era o nome do sétimo mês do ano no calendário republicano, correspondendo aproximadamente ao período entre 21 de março e 19 de abril no calendário gregoriano. "Ano III" significa o terceiro ano desde o início da Primeira República, ou seja, 1794-1795.
Portanto, "18 Germinal do ano III" corresponde a 7 de abril de 1795 no calendário gregoriano.
[2] O barrete frígio é um tipo de gorro cónico, geralmente vermelho, com a ponta inclinada para a frente. É um símbolo histórico de liberdade e revolução. Durante a Revolução Francesa, o barrete frígio foi adotado como um emblema dos revolucionários e frequentemente associado aos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Remonta à antiga Frígia, na região que hoje faz parte da Turquia, onde era usado pelos libertados como símbolo de emancipação. Na Revolução Francesa, o barrete frígio tornou-se um ícone republicano, simbolizando a luta contra a opressão e a monarquia.
[3] "Dentes de lobo" é uma terminologia usada na relojoaria para descrever um tipo específico de engrenagem ou roda dentada. Essas engrenagens têm dentes em forma de cunha, que são mais largos numa extremidade e afilam para a outra, de maneira semelhante aos dentes de um lobo.
Na prática da relojoaria, os dentes de lobo são projetados para minimizar o atrito e melhorar a eficiência do movimento do relógio, proporcionando uma transmissão suave e precisa da energia entre as engrenagens. Esse tipo de design pode ser encontrado em diferentes partes dos mecanismos de relógios, especialmente em componentes como rodas de escape e outras engrenagens de transmissão.
[4] No contexto do escape de cilindro, as paletas trapezoidais são pequenas superfícies em forma de trapézio que fazem contato com os dentes da roda de escape. Desempenham um papel crucial na conversão do movimento de rotação da roda de escape num movimento oscilante do balanço, o que é essencial para manter o tempo preciso no relógio.
A forma trapezoidal dessas paletas ajuda a garantir um contato suave e eficiente com os dentes da roda de escape, minimizando o desgaste e a fricção, o que contribui para a durabilidade e precisão do mecanismo de escape.
[5] Na relojoaria, o termo "Pare-chute" refere-se a um sistema de anti-choque desenvolvido por Abraham-Louis Breguet em 1790. Este sistema foi uma das primeiras formas de proteção contra impactos usadas em relógios. Consistia em pequenos braços de mola que seguravam os pivôs do balanço no lugar, permitindo-lhes deslocar-se ligeiramente no caso de um impacto, absorvendo o choque e reduzindo o risco de quebra dos pivôs.
O "Pare-chute" foi uma inovação significativa na época, pois aumentava a durabilidade e a precisão dos relógios, especialmente em situações onde poderiam ser submetidos a movimentos bruscos ou quedas. Esta invenção de Breguet é um exemplo da abordagem inovadora e detalhada na criação de relógios, que combinava estética refinada com avanços técnicos.
Grande obra, parabéns ao Sílvio!