O ano é novo. E nós, quem somos?
- Nuno Margalha
- há 9 horas
- 7 min de leitura

Uma caixa de relógios vazia está cheia de possibilidades. Uma caixa de relógios cheia é o sinal claro de que precisamos de uma vazia. De caixa em caixa avançamos, empurrados pelo desejo e puxados pelo acaso. Tornamo-nos coleccionadores e, nesse processo, construímos um estilo pessoal. Num exercício assumidamente teórico, procurámos isolar alguns dos perfis mais recorrentes, como quem escolhe os instrumentos de uma composição musical.
“Tudo num ponto” é o título de um conto de Italo Calvino que parte de uma ideia vertiginosa: todo o universo concentrado num único ponto. O narrador, o Sr. Qfwfq, descreve o seu percurso desde esse instante inicial — o Big Bang — até ao presente, sempre com a certeza de um eventual regresso ao ponto primordial. Pode dizer-se que se trata de um conto sobre a maior colecção de todos os tempos: a colecção de tudo.
Porque razão o conjunto de todos os relógios existentes não pode ser considerado uma colecção?
Antes de mais, porque não pertencem ao mesmo dono. Depois, porque não estão reunidos. E, por fim, porque não obedecem a critério algum. O critério é, talvez, o elemento mais importante na distinção entre uma colecção e uma simples acumulação de objectos.
É ele que estabelece parâmetros de comparação. Qualquer característica capaz de distinguir um relógio de outro pode tornar-se critério de colecção.
Os critérios podem organizar-se de múltiplas formas, e é precisamente essa organização — a selecção, a hierarquia, a insistência — que define o perfil de cada coleccionador.
Poderíamos afirmar:
mostra-me a tua colecção de relógios e dir-te-ei quem és.
Observar uma colecção é sempre um exercício de autoconhecimento, no qual emergem traços evidentes da personalidade do seu coleccionador. Tal como num livro todas as personagens são, em última instância, criações do escritor, numa colecção todos os relógios resultam de escolhas pessoais e, por isso, reflectem quem os escolheu.
Resta o sonho. Mais do que aquilo que somos, uma colecção revela aquilo que gostaríamos de ser. Os mergulhadores, os pilotos e os exploradores de escritório sabem-no bem. As colecções funcionam como espelhos onde reconhecemos forças e tentamos compensar fragilidades. Os mais meticulosos, os apaixonados pela cronometria, compreendem-no de forma particularmente clara.
Quando a realidade se revela monótona, as complicações oferecem uma saída.
Quando o mundo se apresenta demasiado feio, o design pode ser um refúgio.
Quando o passado parece superior ao presente, o vintage surge como resposta.
Quando as relações afectivas se tornam difíceis, o compromisso com uma marca pode servir de compensação.
Quando a vida económica assusta ou entusiasma, uma colecção orientada pelo investimento pode trazer segurança ou excitação.
Nada disto é absoluto. A complexidade humana raramente encaixa em categorias estanques. Como se o acaso não bastasse, ao longo da vida do coleccionador os critérios mudam, e com eles transforma-se a própria colecção. Todos sabemos como começámos; ninguém sabe como terminará. Muitas vezes, o puxão do acaso revela-se mais forte do que o empurrão do desejo.
O exercício que se segue afasta-se deliberadamente da realidade concreta de cada um. Deve ser entendido como um conjunto de espelhos nos quais podemos encontrar um reflexo fiel, imperfeito, ou mesmo nenhum reflexo.
O Narciso

Entre as várias versões do mito de Narciso, uma das mais sugestivas conta que Tirésias profetizou, no dia do seu nascimento, que o jovem teria uma vida longa desde que jamais contemplasse a própria imagem.
Narciso cresceu e tornou-se de uma beleza extraordinária, despertando o amor de várias ninfas, entre elas Eco. O desprezo com que as tratou conduziu algumas a pedir vingança aos deuses. Némesis condenou-o então a apaixonar-se pelo seu próprio reflexo na lagoa de Eco. Prisioneiro dessa contemplação, Narciso definhou. Após a morte, foi transformado na flor que ainda hoje leva o seu nome.
À semelhança de Narciso, este coleccionador adopta a beleza como critério central.
Os seus relógios reflectem a beleza que possui — ou a que gostaria de possuir.
Não é raro surpreendê-lo a contemplar demoradamente o próprio relógio, quase como Narciso diante da água imóvel. Trata-se, talvez, do coleccionador mais ancorado no presente, já que o critério estético tem ganho um protagonismo crescente. O que é belo varia com o contexto: nos relógios vintage, as marcas do tempo acrescentam carácter; nos relógios novos, procura-se a perfeição imaculada.
Tal como o próprio coleccionador, os seus relógios devem estar sempre impecavelmente apresentados, com correias e braceletes escolhidas ao detalhe. O Narciso reconhece-se nos relógios que lhe agradam visualmente e, ao usá-los, sente-se contaminado pela sua beleza. Elogiar o seu relógio equivale a elogiar a sua aparência.
O Meticuloso

Para o Meticuloso, um relógio assemelha-se a uma matrioska infinita: cada camada removida revela outra, pronta a ser explorada. E se há coisa que aprecia é a luz, pois a escuridão alimenta o desconhecimento, um dos principais ingredientes do medo. É neste jogo entre luz e sombra que nasce o Meticuloso.
Sentir é infelizmente uma forma eficaz de apagar a luz. Um sentimento intenso conduz-nos, muitas vezes, a fechar os olhos à realidade.
O Meticuloso prefere reduzir a intensidade do sentimento para aumentar o controlo.
O domínio dos detalhes torna-se, assim, uma forma de iluminar o desconhecido, e os relógios oferecem uma fonte inesgotável desses detalhes.
Pode sê-lo em relação ao funcionamento ou ao aspecto. O primeiro controla-se através da análise da cronometria. Um relógio preciso transmite segurança; a reserva de marcha indica durante quanto tempo podemos confiar nele. Cruzar ambos os dados permite acompanhar variações ao longo de todo o ciclo de corda. No aspecto, os detalhes multiplicam-se: o acabamento dos ponteiros, a textura do mostrador, a inclinação das asas.
O Meticuloso observa um relógio como quem se aproxima demasiado de um quadro impressionista, e analisa cada pincelada para evitar o impacto emocional do conjunto. Ainda assim, a maioria encontra, por vezes, coragem para recuar, afastar o olhar dos detalhes e sentir.
O Investigador

Em cada relógio existe um mundo por explorar.
Quem aprecia romances policiais reconhece facilmente este perfil. Cada peça da colecção equivale a uma cena de crime pronta a ser analisada. A investigação exige calma, paciência e tempo. Para estes coleccionadores, mergulhar no passado dos seus relógios constitui uma forma eficaz de descansar do presente.
O presente cansa pela sua urgência; o futuro inquieta pela imprevisibilidade. O passado, pelo contrário, apresenta-se estável e, por isso, tranquilizador. Nos relógios novos, investiga-se o percurso da marca e as variações que conduziram ao modelo actual. Nos vintage, o campo é quase ilimitado: marcas de manutenção, dedicatórias, personalizações, contrastes, indícios de proveniência.
A investigação prolonga-se naturalmente para a pesquisa em livros, revistas, arquivos e alfarrabistas. Concluído o processo, surge a necessidade de partilhar resultados. Publicar, discutir, divulgar em fóruns, blogues ou redes sociais permite despertar interesse pela história e fornecer critérios a futuros coleccionadores.
O Guardador de Memórias

Agostinho da Silva aconselhava:
“Não faças planos para a vida, que podes estragar os planos que a vida tem para ti”.
Se o futuro resiste à arrumação, resta organizar o passado. Existe uma memória para cada relógio e um relógio para cada memória. Esse é o lema do Guardador de Memórias.
Os relógios funcionam como cofres capazes de conter triunfos, nascimentos, viagens, encontros e despedidas. A sua caixa assemelha-se a um álbum de fotografias. O valor comercial, o design ou as complicações pouco importam. Essencial é que o relógio esteja vivo, em funcionamento, sinal de que a memória associada também permanece activa.
O passado não é tão estático quanto parece. As descrições alteram-se com o tempo, contaminadas pelas vivências posteriores. A precisão dilui-se; o sentimento permanece. O Guardador de Memórias preserva sobretudo esse sentimento. Usar um relógio associado a uma vitória pode iluminar um dia difícil. Usar o relógio de alguém que já partiu aproxima-nos dessa presença ausente. Aprisionar o tempo é impossível, mas o gesto traz serenidade.
O Engenhocas

Se é possível complicar, para quê simplificar?
A simplicidade, embora bela e serena, revela-se aborrecida para o Engenhocas. Relógios de horas, minutos e segundos causam-lhe inquietação. A vida é demasiado curta para o que é simples.
Este coleccionador procura movimento constante. Os relógios devem esconder talentos, truques e surpresas. Devem provocar espanto. Tudo o que é estático inspira desconfiança. A sua caixa é um verdadeiro parque de diversões para as complicações relojoeiras.
O Engenhocas reconhece que o tempo acelera ou abranda conforme o contexto. O entusiasmo é o único antídoto contra a lentidão. Compreender o funcionamento de uma complicação é alegria pura em forma de latão e aço. A calma surge apenas depois da compreensão total, semelhante à do alpinista no topo da montanha. O futuro representa invenção; o passado, descoberta. O lado estético importa apenas enquanto consequência do processo técnico.
O Investidor

Comprar e vender relógios permite conhecer muitos modelos. O Investidor aprecia esse conhecimento, ainda que superficialmente técnico. O momento da aquisição é o auge da experiência. Sabe que, se necessário, pode converter rapidamente a colecção em liquidez, sem perdas significativas.
A segurança é central. Apresentar uma compra como investimento neutraliza a culpa associada ao luxo. Cada relógio representa um degrau numa trajectória económica. A colecção torna-se uma sucessão de provas de sucesso financeiro.
Como o agricultor, o Investidor planta relógios e colhe euros. Depende do ambiente, do contexto, do comportamento humano. A crise do quartzo ilustra bem essa instabilidade. A melhor defesa reside na percepção apurada e no bom timing. No fim, sabe que controla melhor o dinheiro do que os próprios relógios.
O Comprometido

Manter uma relação amorosa é complexo. O Comprometido encontra mais estabilidade na relação com a sua marca de eleição do que nas relações afectivas.
Assistir ao pôr-do-sol ou jantar à luz das velas com o relógio no pulso basta-lhe.
A fidelidade exige esforço. Nem sempre é fácil permanecer fiel a uma única marca, mas alguns conseguem-no com distinção. A curiosidade por outras casas é mínima. Esta relação não é estranha, pois a marca oferece pertença, comunidade e previsibilidade. Os encontros entre seguidores reforçam essa ligação.
Traições não são toleradas. Mudanças abruptas de estratégia podem ser sentidas como rupturas emocionais. A fidelidade refere-se aos princípios, não à exclusividade. O Comprometido procura constantemente novos adeptos para a sua marca, fortalecendo-a. É, entre todos, o mais gregário dos coleccionadores.
Convidamo-lo a iniciar 2026 com uma reflexão sobre o seu estilo de coleccionador. Identifica-se com um ou com vários destes perfis? A sua opinião é bem-vinda, mesmo que partilhada de forma anónima.
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